Rumo a outro legislativo em 2026?
Como todos sabemos, o Legislativo é o Poder que, numa República, representa o povo no exercício do poder político, que lhe pertence e dele emana, ao eleger todos os seus membros. Assim, se é imperioso, na defesa da Democracia, superar distorções que possam existir na prática política dos três Poderes da República, é mais imperioso ainda superar as que possam ocorrer no Legislativo, por todas as importantes funções de que foi incumbido na Constituição.
Ora, nos dias de hoje, é exatamente no funcionamento do Legislativo que encontramos o maior número de distorções. Mas a maior parte dos brasileiros as naturaliza e com elas convive, sem maiores preocupações. É, portanto, fundamental que sejam percebidas por mais gente, para que possam ser superadas e não minem por dentro a democracia.
O principal objetivo deste texto é contribuir para que isto ocorra, identificando-as e propondo caminhos para sua superação. E assim sejam criadas condições que ajudem o Poder Público a realizar os objetivos essenciais da Constituição: a prevalência da Igualdade e da Justiça social em todas as dimensões de nossas existências – que é o que realmente mudaria nossa vida e é o que mais falta em nosso país.
Nessa perspectiva, agradecemos os comentários, propostas e sugestões que possam ser feitas a partir deste texto. E para que possamos nos comunicar, pedimos que usem o formulário ao seu final.
Antônio Funari, Chico Whitaker e Luciano Santos
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Rumo a outro legislativo em 2026? [1]
Por Antônio Funari, Chico Whitaker e Luciano Santos
Foi noticiado que partidos de direita já estão planejando conquistar a maioria do Senado, como já a tem na Câmara dos Deputados. Querem utilizar uma das prerrogativas desse colegiado – decidir sobre o impedimento de senadores e de ministros do STF – para afastar aqueles que não lhes sejam simpáticos?[2]
Quase ao mesmo tempo, o Presidente recém-eleito da Câmara propôs, mal empossado, que seria bom passarmos logo a um governo dirigido pelo Legislativo, mudando-se nosso sistema de governo para o parlamentarismo ou semipresidencialismo.
Essa manobra de ilusionismo político parece ser o passo final de um plano iniciado em 2015, com a criação das emendas impositivas, para a transferência total da elaboração e execução do Orçamento da República, uma das funções fundamentais do Executivo, das suas mãos para as do Legislativo,[3] o que tornaria a Presidência da República um cargo decorativo.[4] Mas pela pouca importância que a esquerda dá às eleições para o Legislativo, estamos possivelmente nos arriscando a assistir de camarote o sucesso desses passos da direita.
Mas, nesta introdução sucinta deste texto, queremos chamar a atenção para duas das conclusões principais que apresentarmos: como o Legislativo só decide por maioria de votos, a direita consegue formar suas maiorias juntando seus votos com os dos oportunistas e aproveitadores que só conseguem ser eleitos comprando votos de eleitores.[5] E para a prática das Emendas Parlamentares, que começou a ser criada em 2015 com as Emendas Impositivas[6] e alimentam a compra de votos e outras enormes distorções, como uma cereja do bolo das fragilidades de nossa democracia
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Antes, porém, de tratar dessas e outras distorções do Legislativo, cabe dizer que dar importância à eleição para escolher os seus membros não implica em diminuir a importância a ser dada à eleição do Presidente da República. Muitos inclusive dirão, ao lerem o título deste texto, que é ainda muito cedo para pensar no Legislativo, quando a eleição para o Executivo em 2026 já está ali na esquina, começando a esquentar.
De fato, não podemos correr o risco de eleger de novo um Presidente descomprometido com os valores da nossa Constituição. Ela não poderá ser de novo iludida, como o foi há 6 anos – aliás com a mesma tecnologia de comunicação pela Internet que nos Estados Unidos levou Trump ao poder por duas vezes – elegendo o mais conflituoso, mais agressivo e menos preparado dos candidatos à Presidência? Afastado do Exército, mas mantendo a patente e os vencimentos de capitão, ele não se instalou comodamente no Congresso, durante 28 anos, para não fazer nada de útil para a sociedade, como obscuro membro do bloco de deputados que os jornalistas chamam de “baixo clero”?
Pior ainda, aliado em sua campanha por vários tipos de aproveitadores, eles conseguiram reunir em torno de seu nome muitos seguidores, alimentados por mentiras e falsas explicações dos interesses que povoam o mundo da política. E estes não aceitaram que fosse punido por suas ações e omissões como Presidente, frente à Covid, que o responsabilizam por milhares de mortes? E agora, denunciado por sua tentativa de golpe ao fim de seu mandato, em que planejava até assassinar seus opositores, seus apoiadores não pretendem que se apresente de novo como candidato em 2026 – se conseguir deixar de ser inelegível[7] e não for preso pelo mal que fez ao país?
Mas ao fazermos uma campanha vigorosa para a Presidência da República não consideremos o Legislativo um floreio eleitoral! Para evitarmos um erro não cometamos outro, que se repete há décadas, de deixarmos em segundo plano a eleição para o Legislativo. E ao qual fomos por assim dizer induzidos pela própria Constituição, quando os Constituintes estabeleceram, sem se dar conta dos efeitos dessa norma, que as eleições para o Executivo e para o Legislativo no Brasil são concomitantes.[8]
De fato, essa norma reforça uma das grandes distorções do nosso processo eleitoral: a eleição para a chefia dos Executivos monopoliza a atenção e as preocupações dos eleitores e absorve a maior parte dos recursos usados, empurrando a eleição do Legislativo para um segundo plano, como se todo o poder político tivesse emanado do povo somente para o Executivo.
E com isso esquecemos que o Legislativo tem também muito poder, que lhe foi atribuído na Constituição,[9] e que, portanto, sua composição deve merecer todo o cuidado possível.
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Mas passemos logo a esse tema, antes que nos relembrem que não poderemos deixar de nos engajar, também, no enfrentamento social coletivo de muitos outros desafios, mais urgentes, que se colocam para nosso país, entre outros, antigos ou novos: da degradação da Amazonia e das mudanças climáticas[10] aos efeitos de uma eventual degradação psíquica progressiva do Presidente do país mais rico do mundo, que já está nos reservando a cada dia a surpresa de uma nova decisão pouco sensata.
1. Pelo fim da “compra de votos”?
Comecemos pelo fim das nossas reflexões – ou pelo fim da “compra de votos”, uma das principais conclusões da análise apresentada nos primeiros capítulos do texto que se segue.
Nessa análise, terminar com a prática da compra dos votos dos eleitores – típica dos países com muita desigualdade social e quase inexistente nos países ditos “desenvolvidos”[11] – mostrou-se ser a mais decisiva mudança que teria que ser feita no nosso processo eleitoral para chegarmos ao Legislativo de que precisamos, e realmente avancemos em nossa democracia.
Muitos entre os que leiam este texto devem ser céticos quanto a que um dia a compra de votos desapareça no Brasil – sabem que já faz parte dos “costumes” tanto da maioria dos candidatos como dos eleitores.[12] Ainda mais porque há tambem quem seja contrário a que essa compra seja impedida, por ser a única oportunidade de que o povo pobre dispõe para “arrancar” alguma coisa – dentro de tudo que lhe falta – dos poderosos políticos que nas eleições dependem inteiramente dele para ser eleito.
E de fato, apesar da lei 9849/99[13] ter dado mais eficácia à Justiça Eleitoral para coibir esse crime, com o passar do tempo ele parece estar se “naturalizando” de novo, como é possível concluir pelo grande número de casos constatados e o pequeno número de denúncias e punições nas últimas eleições municipais.
Mas as próximas eleições de 2026 criam uma nova e grande oportunidade de uma retomada da fiscalização popular e partidária da compra de votos, em que se empenhem todos os que sabem do mal que ela faz à representatividade do nosso Legislativo e consequentemente ao país.
Caberia assim organizar por exemplo “mutirões” contra a compra de votos? Na verdade, os cidadãos e cidadãs, por mais desinformados que sejam, já sabem que se trata de crime, como o é a propaganda enganosa, que só acontece por falta de fiscalização, e quem a promove não deveria merecer sua confiança. Mutirões desse tipo, em iniciativas espalhadas por todo o país, seguramente contribuiriam muito para a ampliação dessa consciência.
Se assim for, poderíamos propor aos eleitores, nas próximas campanhas eleitorais, que classificassem os candidatos em dois grupos: o dos que “compram votos” e o dos que “não compram votos” … A imagem do Legislativo melhoraria muito se só fossem eleitos os que “não compram votos”.
Isto teria ainda mais importância porque, se a “naturalização” da compra de votos, na eleição, transformou o voto dos eleitores em moeda de troca para satisfazer necessidades imediatas, ela teve outros efeitos, graças a uma extensão dessa perversão corrosiva, a combater também: os parlamentares eleitos dessa forma passaram a considerar que podiam igualmente vender seu voto, como moeda de troca para aprovar as leis que interessam aos privilegiados do país, desde que recebam também, obviamente, alguma compensação.
Com o que seria possível uma classificação em dois grupos ainda maiores: o dos que “compram e vendem votos” e o dos que “não cometem esses crimes”. O que teria também como efeito paralelo o de alertar os eleitores de que vendendo seu voto estariam cometendo um crime.
Sonhando bastante, caberia até tentar organizar sistematicamente, a cada dois anos, nas eleições, “mutirões nacionais”, como no próximo ano o “Mutirão pré-eleitoral 2026 contra a compra e venda de votos”, de que participassem, além do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, outras organizações da sociedade civil – como seguramente a CNBB, que foi quem mais apoiou o lançamento da iniciativa popular que resultou na lei 9840/99 – e os meios de comunicação de massa realmente comprometidos com a democracia, juntamente com os candidatos e partidos “a favor do povo”.
Coordenado por um coletivo de representantes dessas organizações, esse coletivo ressurgiria, por exemplo, a cada mês de março do ano da eleição, com uma divulgação impactante por exemplo do slogan usado na campanha de coleta de assinaturas para a lei 9840-99: “Atenção! Este ano é de eleição: voto não tem preço tem consequências.” Com isso se asseguraria a continuidade desse trabalho, que é necessariamente de longo prazo.
Suas primeiras ações poderiam incluir uma ampla divulgação da lei 9840/99, especialmente quanto à caracterização, como crime previsto no Código Eleitoral, da compra ou tentativa de compra ou venda de votos, e quanto à punição nela prevista: perda do registro de candidato e eventual inelegibilidade por 8 anos. Com isso já seriam alertados os candidatos, criando pelo menos nos mais novatos o temor de serem denunciados e se tonarem inelegíveis.
Paralelamente, e ao longo do tempo até a eleição, esse coletivo difundiria material de formação sobre o poder do voto que a Constituição atribuiu ao eleitor, assim como sobre o papel e o poder do Legislativo e sua necessidade de representar efetivamente a população, em toda a sua diversidade, em seus diferentes tipos.
Ao mesmo tempo, faria campanhas convidando a população a formar “coletivos pró-democracia – sem compra nem venda de votos”, assim como fornecendo informações sobre como proceder diante de constatações da ocorrência desse crime, que assumissem o trabalho de fiscalizar as eleições e denunciar compradores de votos.
Naturalmente, isto provocaria a diminuição, ainda que lenta, do número de candidatos dispostos a fazer parte do tipo de maiorias que hoje existem. E exigiriam muita mão de obra, o que pode ser uma forma de aumentar a participação popular na atividade política.
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Feita esta introdução que esperamos seja motivadora, passemos à apresentação das reflexões e constatações que nos levaram à conclusão apresentada.
2. Por que é importante a eleição para o Legislativo?
Para começar, lembremos que a Constituição afirmou, no parágrafo único do seu primeiro artigo, que “todo o poder emana do povo,[14] que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.[15]
Ora, o Legislativo é o único dos três Poderes cujos membros são todos eleitos pelos cidadãos e cidadãs, diferentemente portanto do Executivo, em que somente seu chefe e eventual substituto são eleitos,[16] e do Judiciário, em que ninguém é eleito. Assim, é por meio do Legislativo que o povo pode dizer o que deseja para o país.
Seria então pelo menos inconsequente abdicarmos desse poder, que nos foi atribuído, de escolher quem falará em nosso nome nas assembleias de representantes que são os Parlamentos, em seus diferentes níveis.
Mas é exatamente o que ocorre no Brasil. A maioria dos eleitores deixa para pensar em quem votar para Deputado, Senador ou Vereador na última semana antes da eleição. Com isso podemos ajudar a eleger os candidatos que tiverem muito dinheiro para suas campanhas, mas muitos podem ser os menos sérios, menos preparados e menos conscientes da responsabilidade da função para a qual serão eleitos. Pior, na pressa com que os escolhemos, depois nos esquecemos totalmente dos seus nomes.
Lembremos também que no Plebiscito de 1993 escolhemos a democracia como sistema político, e como forma de governo a República, apoiada num Estado Democrático de Direito. E num Estado Democrático de Direito o que rege tudo é a Lei – o chamado império da Lei – o que afasta dos horizontes quaisquer autoritarismos sem Lei.
Ora, quem faz a lei é o Poder Legislativo, como seu próprio nome indica.[17] E as Leis conformam e regulam tudo em nossa vida coletiva e política. Todos e todas – cidadãos, cidadãs, organizações sociais e econômicas, partidos e Poderes – têm que as respeitar, em seus vários níveis: para todo o país, para cada Estado e cada Município, todas tendo que respeitar a Lei máxima que é a Constituição – a Lei das Leis, aprovada por uma Assembleia Constituinte acima de todos os Poderes.
Elas especificam os direitos e deveres de cada um nas diferentes atividades que desenvolvemos: para atender às nossas necessidades e realizar nossos sonhos, segundo nossas idades e mesmo nosso sexo; para estudarmos e para pesquisarmos; para respeitarmos e protegermos a natureza, o mundo animal e a própria vida em nosso planeta; para regular com equidade nossas atividades comerciais, produtivas e de comunicação; para nos lançarmos na realização de planos que possam melhorar e não piorar as condições de vida de todos e de cada um ou uma; para nos relacionarmos com nossos semelhantes, respeitando os seus múltiplos e diferentes interesses e a Justiça; para processar judicialmente e punirmos quem desrespeite a lei, etc, etc, etc..
E todo esse imenso conjunto de normas imperativas do Estado Democrático de Direito é promulgado pelo Executivo, mas só depois de aprovado nos diversos Parlamentos, em seus vários níveis, em que se reúnem, para tomar suas decisões, os membros do Poder Legislativo.
Mas além de nos dizer o que podemos ou não podemos fazer, esse Poder diz, por meio de leis, o que o próprio chefe do Poder Executivo pode ou não fazer – a partir principalmente da Lei Orçamentária, que define onde devem ser utilizados os recursos do Tesouro Público, e ao longo de seu mandato pela série de leis aprovadas pelo Legislativo o autorizando a agir.
E tem ainda a prerrogativa de afastar o Chefe do Executivo se, a seu critério, ele desrespeitar a lei. E já não existem, na mesa do Presidente da Câmara dos Deputados, três pedidos de Impedimento de Lula, esperando eventual encaminhamento?
O Legislativo tem ainda a competência, específica e exclusiva, de conceder anistias que beneficiem diferentes tipos de criminosos, entre os quais aqueles que atentem contra a democracia. E não está também na pauta da Presidência da Câmara dos Deputados um projeto visando anistiar os mandantes e executores da tentativa de golpe de 8 de janeiro do ano passado, ainda que se ouça, na sociedade, o grito “anistia nunca!”[18]
E não esqueçamos que, ao nível federal, o Poder legislativo compreende também o Senado – corpo especial de legisladores eleitos pelo povo para representar cada um dos Estados do país, todos com o mesmo número de representantes. E ele tem ainda mais prerrogativas que a Câmara dos Deputados.
Assim é que, por exemplo, o pedido de impedimento do Presidente da República é admitido ou não pela Câmara dos Deputados, mas quem o julga é o Senado, em sessão presidida pelo Presidente do STF.[19] E entre as outras prerrogativas do Senado, está o de julgar o impedimento dos ministros do STF, a que já nos referimos no início deste texto, assim como de outras autoridades do Judiciário e do Procurador-Geral de Justiça, além de ministros do governo.[20]
3. Quem se candidata a ser membro do Legislativo?
Como sabemos, as pessoas que compõem o legislativo são eleitas pela população, como seus representantes. E todo e qualquer cidadão ou cidadã pode se candidatar a essa representação, com o limitante da idade e do atendimento a uma série de requisitos constitucionais e legais, entre os quais não estar na condição de inelegível, por crimes cometidos.
Isto não foi sempre assim, como sabemos também. E o caso por exemplo das mulheres, que só a partir da lei Eleitoral de 1933 puderam votar e serem votadas, com esse direito incorporado à Constituição em 1934. E em 1935 tornou-se obrigatório o voto de mulheres que tinham atividades remuneradas. O voto dos analfabetos, por sua vez, foi incorporado à Constituição só em1985, como facultativo, e assim mantido na Constituição de 88, além desse voto ser estendido aos maiores de 70 anos e aos jovens de 16 e 18.
Mas o desprestígio dos políticos em geral leva grande parte dos eleitores a considerar que todos são “farinha do mesmo saco”, aliás da pior qualidade. Embora seja extremamente variada a motivação dos que se candidatam ao Poder Legislativo, desde os seriamente preocupados em cumprir adequadamente as funções dos membros desse Poder, até os que podem efetivamente ser considerados como oportunistas e aproveitadores.
Assim é que há muitos, principalmente entre os mais jovens, que tiveram a oportunidade de descobrir que somos nós mesmos que construímos as nossas sociedades, e que conseguem ser eleitos com uma visão positiva e construtiva do trabalho a que irão se dedicar. Outros vêm de uma militância em movimentos sociais, políticos ou religiosos, acreditando que podem ampliar no Legislativo o trabalho que já fazem. Há os que já entram com uma visão ideologicamente mais clara das diversas funções políticas, para cumprir a missão que lhes parece necessária. Há também os que veem o Legislativo somente como uma caixa de ressonância do que se passa na sociedade, e pensam que seus discursos nas tribunas dos parlamentos podem chamar a atenção dos dirigentes políticos para os anseios e as dores da população.
Os eleitos com tais motivações positivas às vezes se frustram, depois de empossados, ao verem o que podem efetivamente fazer, ou não tenham estômago para engolir o que encontraram. Entram com no máximo uma visão teórica do que é o legislativo e suas funções, mas é a prática, em seguida, que vai abrir seus olhos para a realidade desse Poder. Com isso há os que perdem o entusiasmo de candidatos, mas, como bons seres humanos que somos, usufruem um pouco das facilidades da vida de parlamentar, sem se relacionarem com os claramente mal-intencionados, até se cansarem do ambiente menos prazeroso em que entraram.
Pode-se dizer, ainda, que a maior parte dos eleitos, a menos dos que já foram assessores de parlamentares, só vêm a compreender o que é e pode o Poder Legislativo ao fim de pelo menos um mandato. Ou seja, é possível que seu conhecimento do Legislativo seja de início tão limitado quanto o dos próprios eleitores.
Mas, por outro lado, se no Brasil são muitos os que lutam para que as Leis de nosso Estado Democrático de Direito assegurem a realização dos objetivos fixados na Constituição, nem todos que se candidatam a funções políticas estão preocupados com esses valores e objetivos da política. É até mais provável que a grande maioria nem os identifique muito bem, e não veja sua atividade como um serviço prestado à coletividade, para assegurar que sejam respeitados. Eles a veem somente como uma “profissão” bem remunerada – com aposentadorias seguras e fartas.
Ora, este tipo de candidato sabe também que nessa “profissão” se pode ganhar ainda mais dinheiro “por fora”, com boas retribuições aos serviços prestados a quem precise de leis que facilitem ou beneficiem seus negócios. Os mais espertos veem até a possibilidade de receber “comissões” mais significativas, pagas aos intermediários e “facilitadores” de negociações mais pesadas do governo.
E é por isso que, na relação quase cotidiana entre Executivo e Legislativo, surgem práticas como a do “é dando que se recebe”[21], ou do “toma lá dá cá”, que os comentaristas políticos quase já consideram “naturais”, para que o Executivo consiga amealhar os votos necessários para a aprovação de seus projetos de lei – que finalmente são as autorizações que o Legislativo terá que lhe dar para que possa realizar suas promessas de campanha.[22]
Além disso, para os que tenham ambições mais “políticas” e sejam mais talentosos, ou mais “espertos”, o Legislativo também toma a forma de “trampolim” que pode impulsioná-los para voos mais altos, a níveis superiores desse mesmo Poder ou nos seus próprios partidos; ou para cargos no Executivo – um objetivo sempre visado especialmente pelos que têm más intenções, porque é nas mãos desse Poder que estão as chaves do Tesouro Público, ainda que ele dependa, para abri-lo, da senha fornecida pelo Legislativo na Lei Anual do Orçamento.
Ou seja, para grande parte dos eleitos a atividade política é todo um mundo novo a explorar. Para o mal, se não tiverem muitas exigências éticas.[23]
Os eleitores menos informados talvez não cheguem a ver tudo isso com clareza, mas a percepção negativa que a população tem dos “políticos” em geral piora ainda mais quando surgem também informações sobre as agora já famosas “rachadinhas”, que existiam há muito tempo sem que os cidadãos e cidadãs comuns soubessem: amigos, parentes ou cabos eleitorais que trabalham nos gabinetes dos parlamentares aceitam repassar parte ou tudo que ganham para seus empregadores, na melhor das hipóteses a título de contribuição para os custos da campanha seguinte, já que sua reeleição beneficiará a todos.
Um pequeno detalhe pouco conhecido aumenta os frutos dessa prática: são os próprios parlamentares que – legislando em benefício próprio – definem, no início ou ao fim de seus mandatos, o nível de remuneração e o número de seus assessores, com os quais poderá contar também para “rachar” mais salários.
Há Câmaras em que se ironiza com o número excessivo de assessores a que se chega, com essa prática: por falta de espaço nos gabinetes, é dispensada a presença dos “cabos eleitorais”, encarregados de manter, nas “bases” do parlamentar, sua conexão com seus eleitores, para assegurar sua fidelidade nas eleições seguintes. Mas também se evita que todos venham no mesmo dia – desde que, obviamente, os que recolhem as “contribuições” não deixem de vir no dia de recebimento dos salários…
Estas distorções são todas muito convidativas para quem quer enriquecer, no quadro de vida criado pelo sistema econômico capitalista em que vivemos, em que ganhar dinheiro é o objetivo principal de todos, até dos que vivem na miséria. Mas é o que torna perigosa a atividade política, para quem não tenha princípios éticos e morais fincados solidamente nas suas consciências. Podem até “destruir” moralmente as pessoas.
Por outro lado, na convivência diária com seus colegas os parlamentares ficam sabendo de suas dificuldades ou mesmo sofrimentos pessoais e familiares – como os temos todos nós, em nossa condição humana – o que os leva a serem menos exigentes e mesmo mais solidários com eles, em seus “esquemas” menos “aconselháveis”, até que passem, naturalmente, da convivência à conivência.
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É assim que o Poder Legislativo no Brasil é o lugar em que todos começam a entender o que fazem os políticos e a assumir funções de responsabilidade social, maior ou menor, mas se torna também uma espécie de “viveiro de políticos”, onde quem consegue entrar se instala e passa a se alimentar, esperando sua vez de conseguir o que realmente busca – entre eles, incrivelmente, há os que sonham nada mais nada menos do que um dia alcançar a Presidência da República…
Não se pode, no entanto, ignorar que essa dinâmica autocentrada é também incentivada pela publicidade que submerge os meios de comunicação ao nos “ensinar como agir na vida”, mas num sentido inverso ao que seria necessário para fortalecer a solidariedade social. Como por exemplo a de um cigarro em que foi contratado um dos nossos admirados campeões mundiais de futebol para dizer, com um sorriso simpático, enquanto tirava um cigarro do seu maço: “Gosto de levar vantagem em tudo. Leve vantagem você também.” E essa “orientação” se tornou um princípio de vida de muita gente.[24]
Mas talvez valha a pena lembrar que, contrariamente ao que pensam muitos que equalizam os “políticos”, tudo depende do objetivo de cada um ao decidir se candidatar.
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A porta de entrada mais fácil nesse “viveiro” é a das eleições para as Câmaras Municipais, sendo por isso a primeira normalmente usada pela maioria dos futuros “políticos”. E é nelas que mais facilmente começa a se mesclar, em meio às mais variadas motivações, um número significativo de oportunistas e aproveitadores.
Muitos deles se satisfazem a esse nível: “entrou pobre e saiu rico”,[25] diz tranquilamente a sabedoria popular sobre seus representantes em Câmaras de cidades menores. Há quem fique a vida inteira nessa representação, reeleito por décadas, gozando das vantagens e benesses de cargo, e da consideração social que mereceria o status que conquistou, não fossem as distorções que seu funcionamento pode conhecer.
Mas é esse tipo de parlamentar que mais prejudica a imagem da sua atividade. Em 1959 um rinoceronte foi o mais votado para vereador em São Paulo. Em 1988 no Rio de Janeiro um macaco ficou em terceiro lugar, com 400 mil votos, na votação para prefeito.[26]
As urnas eletrônicas nos livraram dessa forma – usada nos tempos em que o nome do candidato era colocado por escrito na cédula eleitoral – dos eleitores demonstrarem seu descrédito na “política”. Hoje, o protesto se exprime pela abstenção, o que afeta ainda mais a representatividade dos parlamentos, com o Poder “emanando” somente de uma parcela do Povo.
O pior é que tais parlamentares são eleitos e reeleitos por vezes para uma longa série de mandatos – fazendo render ao máximo seu “capital político”, ou seja, o conjunto de “eleitores” a que conseguiram se ligar organicamente, e que vão sendo “premiados” da melhor forma possível. E, no momento oportuno, passarão suas “vagas” para seus assessores, ou para filhos ou mulheres cujos sobrenomes garantirão a presença do clã na “classe política”. E se o conseguirem em cada nível da estrutura, os de baixo poderão atuar também como cabos eleitorais dos de cima, que por sua vez cavarão “oportunidades” para os de baixo subirem.
Cria-se assim, dentro da chamada “classe política”, um sólido conjunto de políticos/cabos eleitorais, instalados permanentemente nos “viveiros” dos Poderes Legislativos, que atuam como peças de uma imensa e bem azeitada máquina a serviço da “classe” em seu conjunto, nos processos eleitorais – inclusive dos candidatos de seus partidos ao Executivo.
4. A distorção da representatividade
Para que o Legislativo possa cumprir democraticamente esse papel, é essencial que seja composto por representantes de todos os cidadãos e cidadãs do país. As leis que resultem dos seus debates e das votações, num enfrentamento, que se espera seja civilizado, dos interesses extremamente diversificados e muitas vezes antagônicos que existem em toda sociedade, precisam atender o máximo possível dos interesses e anseios de todos, respeitadas as vontades das maiorias e das minorias. Sabemos que é praticamente impossível atingir plenamente tais resultados, mas é preciso nos aproximarmos dele ao máximo, para que a Democracia não seja, para os menos representados, uma grande enganação.
Ora, a diversidade na motivação dos que se lançam candidatos ao Legislativo leva naturalmente a uma grande diversidade na sua composição, especialmente quanto aos níveis de renda. Com isso, sua representatividade se torna extremamente distorcida, num país desigual como o nosso.
Tal desigualdade foi sendo corrigida muito vagarosamente, ao longo da história, pela pressão da base da pirâmide social e dos movimentos sociais e partidos políticos que buscam representar seus interesses. Mas está ainda longe de diminuir significativamente, tal era o seu nível quando o país começou a existir, no fim da escravatura, e o nível a que está chegando no regime capitalista – que cria desigualdades cada vez maiores ao mesmo tempo que as naturaliza, ao transformar todos em “consumidores”.
Hoje nossa população parece ter se acostumado a viver em dois países, que compartilham o mesmo território ocupando zonas diferentes, como nos demais países do Terceiro Mundo: distantes umas das outras, vizinhas ou imbricadas, umas mais vazias e arborizadas, mas com gente querendo usar sua riqueza para fugir para outro planeta, outras no chão vazio e seco da miséria.
Mas disso resulta um enorme descompasso entre representantes e representados, que apareceu claramente quando recentemente, por exemplo, os deputados federais não aprovaram uma lei proposta pelo Executivo que taxava as grandes fortunas para reunir recursos para necessidades desatendidas.
O que aconteceu mostrou claramente que o conteúdo das decisões do Legislativo é determinado pelos mais ricos – o já famoso 1% da população, nela sobrerepresentado – empurrando sempre para longe políticas públicas visando aumentar a renda do povo pobre, subrepresentado.
Nem falemos de outro tipo de representatividade, vinculada também à questão da desigualdade de renda: a total desproporção entre o número de parlamentares que têm curso superior daquele dos que chegaram pelo menos ao nível médio de escolaridade. Se para resolver este descompasso é preciso uma ação de muito longo prazo para assegurar o ciclo completo de educação ao máximo possível de brasileiros, seria necessário pelo menos aumentar o número daqueles que representam quem tem mais baixa escolaridade.
E se a escolaridade não for o mais importante, mas sim a experiência e a sabedoria humana, temos um Presidente da República que sabe muito mais do que muitos doutores, de anel no dedo, o que é importante para a vida. Mas teremos algum dia um Parlamento que tenha doutores e trabalhadores e doutoras e trabalhadoras na proporção em que existem na sociedade?
Há outras distorções também antigas, na representação de nossa sociedade: mais de metade dela é composta por mulheres assim como mais da sua metade por negros. No entanto, seus representantes em nossos parlamentos são, muito mais do que majoritariamente, homens e brancos. E o número de indígenas eleitos para os parlamentos é proporcional ao seu número no país?
E há distorções decorrentes do desconhecimento generalizado do que são e fazem os três Poderes numa República, que explica a pouca atenção dos eleitores à eleição do Legislativo, mas ocorre também nos partidos que se propõem a representar o povo pobre. Pode-se até dizer que eles pouco se preocupam com o número de parlamentares que conseguem eleger enquanto, inversamente, os partidos que representam o 1% super-rico tratam de fazer com que seja eleito o maior número possível de seus candidatos ao Legislativo.
5. Como o poder legislativo toma decisões e se formam maiorias
Mas todo o processo decisório dos parlamentos tem um ponto de chegada que não depende da ação individual dos parlamentares, por mais belos discursos que consigam fazer em suas tribunas e sua capacidade de tocar os corações de seus colegas, ou do seu maior ou menor sucesso nas disputas verbais em que se empenhem: a aprovação das leis ou outras decisões incluídas em sua pauta.[27]
Numa democracia essas decisões têm que ser tomadas pela maioria dos votos dos membros da Assembleia que as tome. Ou seja, para que uma decisão tenha efeito, é preciso formar maiorias que aprovem cada projeto ou outro tipo de decisão, na diversidade de interesses que o parlamento deve representar.
Nesse quadro, é essencial considerar que essa é uma das características mais importantes do funcionamento do Poder Legislativo: suas decisões, enquanto Poder, não são tomadas por uma direção ou uma presidência, mas sim pela maioria dos seus membros, como toda Assembleia representativa democrática. E mesmo várias das decisões necessárias à condução dos trabalhos, tomadas pelos que a presidem, têm que ser aprovadas pela maioria do plenário.
O Legislativo nisso difere enormemente dos outros poderes, embora no Judiciário haja decisões que precisam ser tomadas por maiorias, em determinados colegiados, e mesmo no plenário de todos os seus membros. Mas há decisões que podem ser tomadas individualmente, por seus ministros, com caráter imperativo – que por recurso podem ser levadas à uma decisão do seu colegiado ou plenário.
Assim, não basta ter senadores, deputados ou vereadores nem Mesas diretoras conscientes de sua responsabilidade, como se uma vez eleitos tudo estivesse resolvido. Na verdade, a quase totalidade das decisões do Legislativo depende de que a maioria dos seus membros chegue a um acordo para aprovar ou não as leis ou outras decisões submetidas ao seu Plenário, depois de aprovadas ou não pelas diferentes Comissões que as devem analisar – das quais a primeira é a que verifica sua constitucionalidade.
Nessa perspectiva, não basta, também, eleger muitos membros do Legislativo – que é o que pretendem conseguir no Senado os dirigentes da direita, a que nos referimos no início deste texto. É preciso que os membros eleitos se empenhem em entendimentos que levem à formação de maiorias. Essa tem que ser sua principal preocupação. O que é decisivo num Parlamento é formar maiorias que aprovem as leis que se quer que passem a integrar o arcabouço do Estado Democrático de Direito.
A formação de maiorias se faz evidentemente em torno de interesses comuns. E foi nesta perspectiva que, no Legislativo, a direita no Brasil se antecipou à esquerda, em sua estratégia de formar bancadas temáticas pluripartidárias, como a da bala, do boi, da agropecuária, das religiões-negócio, todas a serviço dos setores econômicos e ideológicos dominantes. E é apoiada nessas bancadas temáticas que a direita consegue se tornar maioria na Câmara dos Deputados.[28]
Enquanto isso, a esquerda se mantém organizada em bancadas somente partidárias, com grande dificuldade em se unificar, por causa de diferenças e enfrentamentos por elas vividos em suas histórias, que somente “frentes” temáticas pluripartidárias não conseguem superar.
Além disso, a campanha eleitoral e o exercício do mandato presidencial anterior ao atual, que usaram o acesso universal a redes de intercomunicação da internet para difundir mentiras, infelizmente levaram nosso país a antagonismos radicais – marcados inclusive por sentimentos de ódio, entre setores sociais, até então pouco comuns em nosso país.
Esta divisão se somou, dentro do Parlamento, ao tradicional enfrentamento entre a esquerda e a direita, em que a direita reuniu desde um assim chamado “centrão” até extremistas com tendências fascistas. A vida parlamentar se transformou com isso numa permanente queda de braço entre esses dois campos políticos, em decisões pelo voto.
A direita se entrega então de corpo e alma à prática do “é dando que se recebe”, exigindo do governo o máximo possível de concessões para apoiá-lo no Congresso – até mesmo Ministérios, numa ação política pelo menos esquizofrênica, pela contradição com o fato de ser “oposição” ao governo.
E a esquerda defende as medidas do governo eleito para realizar o que prometeu, mas nem ele mesmo, nem os partidos que o apoiam, se preocupam suficientemente em divulgar de forma sistemática e pedagógica as contradições que realmente existem, por trás da aparente confusão que a direita procura criar (lembremos da mais recente em torno do pix). Com isso, torna-se difícil para os movimentos sociais identificarem com clareza as decisões realmente em jogo e se mobilizarem em defesa dos seus interesses.
E é nesta altura desse enfrentamento que surge uma parte às vezes significativa do chamado “baixo clero”: os oportunistas e aproveitadores que se interessam em participar da atividade política por a considerarem uma boa profissão. Houve tempo em que esse tipo de parlamentar era chamado de “picareta”.[29] Isso é, portanto, um velho tema em nossa realidade política.
Ora, os setores sociais e econômicos que dominam o país, menos preocupados com os princípios constitucionais da Justiça, da Equidade, da Solidariedade, do respeito aos Direitos Humanos e à Natureza, não se sensibilizam com as posturas éticas dos que tentam entrar nos “viveiros”, e mesmo preferem aqueles que vejam com mais flexibilidade essas posturas. Por conseguinte, não têm escrúpulos – antes pelo contrário, tem interesse em financiar as suas campanhas.
E é o “peso morto” dos “votos” desses parlamentares, pouco visíveis na vida dos parlamentos e eles mesmos conservadores e a favor de si mesmos, que “escorrega” naturalmente – com o bom empurrão das contrapartidas – para as posições da direita.
Num processo legislativo de representatividade distorcida, sua função – quase burocrática – é, portanto, a de “inchar” as maiorias que assim conseguem impor sua vontade. As bancadas e partidos “a favor do povo” não podem fazer o mesmo, competindo com as bancadas e partidos de posição contrária na “obtenção” desses votos, ainda menos pelos mesmos métodos. E não há discurso que consiga convencê-los de que precisam “mudar de lado”, para prestar um serviço à nação. Não foi isso que os levou a se candidatar ao Legislativo.
Entre uma e outra votação, eles se ocupam, nos seus gabinetes, do que lhes interessa: no nível municipal atendendo às vezes filas de eleitores – fiéis ou a conquistar – em busca de algum tipo de ajuda junto aos serviços municipais, quase como solícitos assistentes sociais. E ao nível estadual e federal ajudando a resolver, como autênticos despachantes, problemas das empresas de seus financiadores junto aos órgãos do governo. Ou ficam passeando pelas reuniões de comissões e pelos corredores e salas das Câmaras, sem se preocuparem em serem notados pela imprensa – com uma mídia mais interessada nos que “fazem história” – até terem que emergir quando são chamados a votações, pelo celular ou pelos alto-falantes.
Há outra distorção do nosso processo eleitoral que dá também sua contribuição para a entrada de mais parlamentares – eventualmente do tipo dos acima indicados – no bloco do “baixo clero”. É o mecanismo dos “puxadores de votos”: candidatos que são “celebridades” na mídia, nas artes e no esporte e por isso podem receber muitos votos, o que aumenta, pelo sistema do “quociente eleitoral”, o número de eleitos pelo seu partido. Com isso eles “puxam” para dentro do Parlamento outros candidatos com quantidades ínfimas de votos e, portanto, pouquíssimo representativos.
Mas as mudanças já feitas no sistema dos “quocientes eleitorais” para diminuir essa distorção protege os grandes partidos e afasta os pequenos da possibilidade de aumentar suas bancadas com “puxadores de votos” … Ou seja, quem ganha são os mesmos de sempre, mas não a sociedade.[30]
6. Como livrar o Legislativo dos oportunistas e aproveitadores?
O melhor caminho para isso talvez seja o de diminuir o seu número, para que as bancadas de direita não tenham tantos parlamentares desse tipo à sua disposição para formar maiorias como as que conseguem formar. Precisaríamos então atentar para o modo como os oportunistas e aproveitadores conseguem ser eleitos, se em geral não estão muito informados, nem sobre as funções do Legislativo, nem qual é a natureza do trabalho parlamentar.
Como são pessoas que em geral nunca tiveram atividade política, mas resolveram um dia entrar no mundo da política, eles não têm muita coisa a dizer aos eleitores nem o que prometer, por não saberem muito bem que políticas públicas específicas seriam favoráveis ao povo. Menos ainda poderiam convencer os eleitores a elegê-los como seus representantes no Legislativo, até porque grande parte dos próprios eleitores também não está muito informada de que é isso que fazem ao votar.
Assim, eles só podem fazer promessas genéricas de equipamentos, serviços e obras secularmente insuficientes em toda parte. E prometem obtê-los, como se eles mesmos tivessem o poder de trazê-los ou realizá-las, sem esclarecer que isso é função do Executivo. Eles começam assim sua vida política aprendendo a mentir sobre o seu próprio poder, o que explica a desfaçatez típica dos que entraram assim na classe política.
Mas na realidade que vivemos hoje, com fake news que chegam contínua e rapidamente aos celulares de todos nós, a mentira não parece ser um grande problema…
Eles fazem então promessas em discursos que se desfazem com o vento, e passam logo ao mais concreto: entregar generosamente aos eleitores tudo que possa atender às suas carências imediatas: de óculos, dentaduras e pagamentos de contas atrasadas a tijolos e cimento para completar a construção de suas casas, ou comida e mesmo dinheiro vivo, distribuído equanimemente. Tudo deixando bem claro que a retribuição devida é o voto nesse candidato benfeitor. E se o número de votos assim obtidos tiver sido menor do que o esperado, dirão tranquilamente que o povo é muito ingrato, como se ouve muitas vezes nas Câmaras Municipais depois das eleições.
É a prática da “compra dos votos”, mais do que tradicional no Brasil.[31] E aqui chegamos talvez ao ovo da serpente da corrupção,[32] ou ao que poderia ser visto como a maior distorção de nossa democracia, porque corrompe o início mesmo do funcionamento do sistema democrático, isto é, o voto livre e soberano do povo para eleger seus representantes.
Essa prática, já tinha sido considerada criminosa e tipificada no longínquo ano de 1932, em nosso primeiro Código Eleitoral:[33] “dar, oferecer, prometer ou receber, para si ou para outra pessoa, qualquer vantagem, como dinheiro, bens ou favores, em troca de votos”. E era considerada um crime cometido tanto pelo candidato que busca comprar o voto como pelo eleitor que o vende – os mais pobres, mais desavisados e com menor formação política, em grande número no país.
Na verdade, ela substituiu, há quase cem anos, outras formas de fraudar as eleições, pelos chamados “votos a bico da pena”, em que seu número tinha simplesmente que constar de atas previamente escritas, assim como pelo “voto de cabresto”, que “amarrava”, como se faz com o gado, o voto dos trabalhadores e trabalhadoras das empresas do candidato ou dos que financiaram suas campanhas.
Esse primeiro Código Eleitoral foi sendo modificado e completado ao longo do tempo – em 50 e 65, na Constituição em 1969 e em leis eleitorais em 97 – sempre repetindo a tipificação, só variando o número do artigo em que aparece. Mas raramente eram punidos quem comprava votos e ninguém que os vendia – se é que algum chegou a ser denunciado, por ser obviamente cruel penalizá-lo ainda mais do que já o fazem suas condições mesmas de vida.[34]
A possibilidade interminável de recursos, que leva à conhecida lentidão da Justiça, fazia com que a tramitação dos processos abertos partir de denúncias feitas à Justiça Eleitoral fosse suficientemente demorada para que os infratores não chegassem a ser punidos.
Ao contrário, os candidatos eram várias vezes reeleitos, apoiando-se provavelmente nos mesmos eleitores, que passavam assim a integrar seus feudos eleitorais, devidamente herdados pelos seus sucessores. Até os compradores e vendedores morrerem, impunes.
Com o que as carências populares, que criam a oportunidade de comprar votos, passaram a ser “funcionais” para quem as usa em sua vida política. Isto é, não lhes convém que desapareçam – numa contradição com suas promessas de campanha, que sempre falam em eliminá-las.
E foi somente com a Lei 9840/99, de Iniciativa Popular, no último ano de século, (ver nota 13) que tornou possível a punição com decisões de segunda instância, que a Justiça Eleitoral ganhou eficácia para coibir esse crime. Como se a sociedade tivesse enfim acordado para superar uma distorção de nosso processo eleitoral denunciada quase setenta anos antes.
Com isso as organizações e movimentos sociais que lançaram essa Iniciativa Popular trataram de se organizar para fiscalizar e denunciar infrações, o que resultou em centenas de denúncias e punições nas eleições imediatamente seguintes.
7. O que se poderia esperar dos parlamentares e da sociedade civil?
Este texto poderia nos levar à conclusão de que a luta contra a compra de votos deve caber à sociedade civil, que no Brasil tem conseguido construir uma presença mais significativa no que se passa no país. Mas é também totalmente óbvio que sem a ação dos próprios parlamentares, nesse enfrentamento, é praticamente impossível superá-lo.
Nessa perspectiva, o que teríamos que tentar construir é, mais do que uma parceria, uma verdadeira aliança entre aqueles cidadãos e cidadãs preocupados com o Bem Comum com aqueles parlamentares que também se situam nessa mesma luta política. Isto é bem mais do que poderiam nos oferecer os laços que se criam através das atividades dos partidos políticos. É algo novo, que ainda não existe, numa relação que respeite as respectivas autonomias, ao mesmo tempo que busque uma unidade de ação.
Na verdade, isso não é nada fácil numa sociedade marcada de alto a baixo pelo individualismo competitivo – um modo de viver introjetado nas veias das sociedades humanas, há séculos, pela lógica e pela cultura do sistema econômico capitalista que hoje já envolveu o mundo inteiro e o domina.
O enorme peso histórico desse sistema faz com que o individualismo e a competição – que são as molas mestras do seu funcionamento – ressurjam quase naturalmente nos comportamentos – “temos que ser competitivos” – como se já não existisse alternativa. Superá-lo é um objetivo hercúleo, que parece estar acima das nossas forças. Mas temos que o questionar, para efetivamente sairmos do pântano em que todos nos encontramos, quase afogados.
Para os parlamentares isso será especialmente difícil na medida em que cada um é eleito individualmente, por mais que façam parte de grupos, facções, coletivos, etc em cada um dos seus partidos, com todas as suas diferenças entre si. No nosso sistema eleitoral atual, os votos não são dados para coletivos. Numa República o único eleito que carrega consigo o seu substituto eventual é o Presidente da República. Mas mesmo entre esses quase irmãos siameses, ligados por um mesmo cordão umbilical, há espaço para individualismos e traições.
Todos os parlamentares vivem no mundo do cada um por si e Deus por todos. E no próprio dia em que assumem seus cargos, todos parecem ser picados, antes mesmo de o serem pela mosca azul, pela mosca da síndrome da reeleição, que cria uma espécie de reflexo sobre a necessidade de assegurar a sua reeleição ao final de seu mandato. Todos e todas passam a ter uma nova preocupação, em todas as decisões que passam a tomar: verificar se ganham ou perdem eleitores com essa decisão, porque cada eleitor não vota em coletivos de parlamentares, mas sim num único candidato ou candidata.
Entram assim numa intensa competição com todos os demais membros do Parlamento de que fazem parte, e até dos seus próprios partidos, com os quais já competiram para serem eleitos. Quando um partido “racha”, como se diz, não é necessariamente por divergências de conteúdo político, mas sim, mais frequentemente, pela luta por liderança dentro do partido, que vai facilitar ou não a reeleição de cada um e seu “avanço” em sua “carreira política”.
E essa competição nos Parlamentos é mais individualista do que aquelas do sistema capitalista. No capitalismo a competição ocorre dentro de uma empresa, na luta individual por melhores posições na sua estrutura. Mas o que move o sistema como um todo é a competição entre coletivos de pessoas, ou seja, entre empresas.
Ora, esse individualismo competitivo se reflete até na organização do tempo dedicado pelo parlamentar às suas atividades. A busca de visibilidade pessoal na sociedade passa a ser quase uma aflição cotidiana. Isto ocorre de forma evidente ao nível municipal, em que são mais comuns situações em que uma presença pessoal é possível. Mas assim mesmo é preciso correr para chegar primeiro – especialmente se os fatos já estiverem com cobertura da imprensa. E só uma vez alcançado o objetivo de “aparecer” pode-se descansar até a próxima oportunidade.[35]
Nesse sentido vale até a simples aparição como “papagaio de pirata”[36], em acontecimentos e eventos especiais de grande repercussão pública, a qualquer nível, nos quais o papel do parlamentar nem foi tão decisivo, perdendo-se às vezes até o senso do ridículo. Mas apoios corajosos a grupos sociais em perigo ou maior dificuldade, ou maltratados, pode render muitos votos no futuro.
Para isso se torna essencial que os gabinetes de parlamentares tenham bons assessores de imprensa, dedicados e eficazes para “cavar” aparições e entrevistas em programas de rádio e televisão de grande divulgação.
Cada parlamentar competirá também com os outros em todas as possibilidades que surgirem de ocupação de postos nas comissões e na mesa de direção do Parlamento, e em relatorias de projetos de maior repercussão. Ou de postos no Executivo a convite de seu Chefe – e evidentemente de Ministérios, ao nível Federal.
A “carreira” do parlamentar é basicamente individual. É assim que se esvai seu tempo de trabalho que poderia ser usado para conhecer melhor as questões que estão sendo debatidas. E é por isso que muitos consideram que a política é somente um espetáculo.
Ora, para que um novo legislativo surgisse seria preciso que os parlamentares dedicassem realmente mais tempo à construção das maiorias, que são o que decide no Parlamento, começando a atuar juntamente com outros parlamentares. Assim, em vez de cada um elaborar e apresentar “seus” projetos de lei, para apresentar listas nos boletins de informação que enviem a seus eleitores,[37] tentar elaborar leis ou outras decisões em parceria com outros parlamentares – ou, melhor ainda, supra partidariamente e com participação popular.
Nessa prática, vão sendo criadas condições para formar frentes ou bancadas temáticas, em torno de questões que exigem uma atuação mais intensa no parlamento, ou formar coletivos de mandatos com a solidez de um real compartilhamento de objetivos, que lance as sementes das maiorias a favor do povo; a construir numa perspectiva de cooperação entre seus membros, em sua diversidade mesmo ideológica, livre da competição individualista que divide todos e enfraquece cada um.
Uma alteração simples que também ajudaria seria o fim dos gabinetes individuais com inúmeros assessores, bastaria gabinetes de partidos como uma central onde os temas e trabalho seria sinérgico e conjunto evitando gastos desnecessários e unindo os esforços como acontece em países mais avançados.
A consciência disso tudo já está começando a existir em nossos parlamentos. E há quem já tente dar passos nesse sentido, a serviço do Bem Comum. E se até na atividade econômica surgiram as cooperativas, como superação do individualismo competitivo – quanto não se transformam em empresas capitalistas – por que não seria possível fazê-lo igualmente na atividade política, ela mesma voltada exatamente para a busca do Bem Comum, quando não distorcida pela busca de poder individual? É, portanto, possível renovar a prática parlamentar, tornando-a mais coletiva, e com isso mais forte.
Uma tal mudança de prática teria que ser combinada com uma estratégia de comunicação por impacto, que surpreenda pelo inesperado, fora da rotina, sem publicidade paga, percebida por todos dentro e fora do parlamento como algo novo, inédito, que chamasse naturalmente a atenção da imprensa e das redes sociais. Quase como um susto provocado pela notícia do início de uma nova era da vida do nosso Parlamento, marcada pela superação do ramerrão parlamentar das sempre longas negociações entre a fome de benefícios de uma parte dos seus membros e o poder do Executivo, como vemos claramente acontecer muitas vezes nos dias de hoje.
Mais importante ainda seria se ela surpreendesse especialmente os eleitores, que os faria descobrirem que nem todos os parlamentares são oportunistas e aproveitadores.
O Parlamento viveria assim quase “tempos novos”, em sua imagem para o povo se, já nos pleitos eleitorais e seus festivais de compra de votos, deputados e senadores que não compram votos passassem a se empenhar claramente no apoio ao Ministério Público, e à sociedade, no combate a esse crime, por terem consciência de que ele os prejudica, distorce a representatividade parlamentar e cria no Congresso um “peso morto” à disposição dos interessados em decisões contrárias ao povo.
Para a formação de maiorias “a favor do povo” a relação entre a sociedade e o Poder Legislativo pode ser de parceria, porque somos nós que escolhemos seus membros, como nossos representantes, diferentemente do que ocorre com os outros Poderes.
⇹⇹⇹
A aliança e não somente a parceria da sociedade civil com parlamentares realmente a favor do Povo deveria se inspirar na sabedoria política da esposa[38] de um líder sindical das minas de estanho da Bolívia que disse, numa entrevista transformada em livro, a uma jornalista brasileira: para dirigir nossos sindicatos temos que escolher os melhores, mas depois temos que os ajudar, para que não sejam comidos pelos lobos ou se transformem em lobos.
Mas teríamos também muita coisa a fazer independentemente da ação dos parlamentares a apoiar, inspirando-nos na experiência vivida depois da aprovação da Lei 9840/99 contra a compra de votos. Isto é, a organização de grande número de comitês locais para fiscalizar a compra de votos nas eleições, entrosados com o Ministério Público, que é quem pode apresentar as denúncias à Justiça Eleitoral,[39] e com o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que facilita os encaminhamentos decorrentes.
E não podemos nos esquecer do enorme papel que a sociedade civil pode ter com a apresentação de Iniciativas Populares de Lei, em questões sobre as quais os parlamentares não têm muitas condições de enfrentar, por causarem estragos em suas relações com os seus colegas. As duas Iniciativas mais conhecidas – Contra a Compra de Votos e da Ficha Limpa – que resultaram da Constituição de 88, a primeira 10 anos depois e a segunda 20 anos, mudaram muita coisa, mas ainda longe do necessário, no nosso sistema eleitoral.[40]
Que este texto, com tantas informações menos agradáveis à leitura, possa ter este final mais otimista e venha a ser útil. Ainda que o que se passa paralelamente, no Brasil e no resto do mundo, não permita que nos ocupemos somente de nossos problemas paroquiais.
Nesse sentido, valeria a pena dizer, por último, que a sabedoria popular brasileira nos ensina que a esperança é a última que morre. E foi o que nos contou também o poeta francês Péguy,[41] num poema sobre a virtude da Esperança, escrito no início do século passado: – até Deus se espantou quando viu que essa virtude era uma pequena e frágil criança, ao lado das suas irmãs Fé e Caridade, mas era imortal.
12/04/2025
[1] Este texto resultou de um ano de trabalho de uma das Rodas de conversa da Universidade Mútua, uma universidade de novo tipo, sem alunos nem professores, diplomas e mensalidades, menos ainda reitorias e campus (ocandeeiro.org/unimutua). mas fiel às intuições de Paulo Freire. Ela somente estimula a criação de trocas de saberes em assuntos que interessem a seus associados, oferecendo-lhes salas virtuais para esses encontros. A Roda que levou à redação deste texto era sobre “O Poder Legislativo e as eleições de 2024”, que organizou reuniões virtuais e lives com candidatos a Vereador(a) e a Prefeito(a) de mais de 15 cidades de várias regiões do Brasil. A Roda continuará seu trabalho até as eleições de 2026, e está aberta à participação dos interessados que se inscrevam na Unimutua pelo formulário ao final deste texto, pelo qual podem também se inscrever no grupo de elaboração de um eventual Manifesto por outro Legislativo.
[2] O plano seria de médio prazo, começando em 2026, em que um terço dos senadores serão reeleitos ou substituídos. Se conseguirem o que pretendem, qualquer Presidente de esquerda que tenhamos poderá ficar falando sozinho, sem realizar nenhuma de suas promessas de campanha, por não contar com maiorias que o apoiem e leis que o autorizem a agir.
[3] Sob o argumento falacioso de que os parlamentares têm contato direto e permanente com suas bases eleitorais e, portanto, um conhecimento maior do que o do Executivo, sobre o que é nelas necessário.
[4] Resta saber como a população interpretará a manobra, num momento em que nosso Parlamento está tão desprestigiado, graças ao apetite insaciável da parcela de parlamentares cujo objetivo é tirar proveito pessoal do cargo público que ocupam, em vez de buscar soluções para os problemas do país e elaborar leis que os resolvam.
[5] E é sabendo com quem ela lida que pediu recentemente a ajuda de lindas modelos para coletar assinaturas de apoio aos seus requerimentos.
[6] Depois das impositivas, as emendas de bancada, de relator, os “orçamentos secretos” e até transferências bancárias por pix. É também um novo tipo de corrupção no poder público? É o que já está se constatando pelo uso “comercial” das emendas parlamentares, até com Intermediários especializados nesse comércio – como já foi descoberto pela Polícia Federal, com processos já abertos no STF.
[7] Atenção: para se afastar a inelegibilidade basta que a maioria da Câmara modifique um artigo da Lei da Ficha Limpa.
[8] Na busca de superação desta distorção, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral já elaborou uma proposta de mudança constitucional ou lei eleitoral, a ser apresentada ao Congresso como Iniciativa Popular, que separa no tempo essas duas eleições – primeiro se fazem as do Executivo, junto com a escolha, pelos eleitores, dos planos de governo dos partidos ou alianças de partidos; e depois as dos candidatos a parlamentares de cada partido, segundo o número de cadeiras obtidas pela votação em seus planos de governo. Essa separação de datas é a que ocorre na França, por exemplo. Isto permitiria que cada uma das eleições ganhasse a importância que deve ter, com a eleição posterior do Legislativo dando aos eleitores a possibilidade de escolher seu representante segundo o programa do Executivo no qual votaram. E possivelmente ajudaria o eleitor a lembrar sempre, em quem votou para o Executivo, sem tão rapidamente esquecer em quem votou para representá-lo no Legislativo, como agora ocorre.
[9] O poder enorme dado na Constituição ao Legislativo, como se indica neste texto, se deve ao fato dela ter sido elaborada pelo Congresso Nacional então eleito e não por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para esse fim? Flavio Bierrembach, relator da Emenda Constitucional instituindo a Constituinte, encaminhada pelo Presidente da República, optou pela Assembleia Exclusiva, considerando o grande número de apoios a essa opção que recebeu. Mas na Comissão Especial que discutiu a Emenda essa opção era minoritária, o relator foi substituído, e a Comissão adotou a opção de Constituinte Congressual, encaminhada pelo Presidente da República, o que levou o Legislativo a legislar em causa própria.
[10] Ailton Krenak, autor de “Ideias para adiar o fim do mundo”, (Companhia das Letras, 2020), que ficou mais conhecido ao defender em 1987, no plenário da Constituinte, a “Emenda Popular” no. 40, pelos Direitos das populações indígenas.
[11] Embora Musk, o homem mais rico do mundo agora nomeado para um cargo importante no governo americano, tenha prometido, nas eleições que Trump venceu, 100 dólares para cada americano que nele votasse…
[12] “Mas o senhor não vai me dar nem mesmo uma camiseta?” – é uma frase que muitos candidatos que não compram votos dizem ouvir muitas vezes de crianças, na campanha eleitoral.
[13] Em 1997, nove anos depois de promulgada a Constituição, organizações da sociedade civil apresentaram à Câmara dos Deputados um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, pelo qual a compra de votos, ou mesmo só a tentativa de comprá-los, até então pouco punidas, levariam, uma vez comprovadas, à cassação do registro da candidatura pelo Juiz Eleitoral da comarca do crime e à inelegibilidade do infrator durante oito anos, bastando a confirmação da segunda instância da Justiça para que essa punição fosse efetivada. Com o slogan “voto não tem preço, tem consequências”, foram colhidas, ao longo de dois anos, com o apoio principalmente da CNBB, foram coletadas mais de um milhão de assinaturas de eleitores. O projeto foi aprovado no curtíssimo prazo de sete semanas, a tempo da lei vigorar na eleição do ano 2000, como Lei 9840-99. Seus resultados foram significativos nessa eleição, com centenas de candidaturas cassadas. No entusiasmo gerado pela aprovação do Projeto em tempo recorde e por esses resultados, foi criado o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, que reuniu, com o apoio da OAB, muitas entidades e organizações nacionais da sociedade civil, e montou um sistema de ajuda pela Internet aos eleitores para a fiscalização dos pleitos em qualquer lugar do Brasil, em articulação com o Ministério Público.
[14] Teria sido possivelmente melhor se tivesse dito que todo o poder pertence ao povo, uma formulação que chegou a ser proposta na Constituinte, mas, que se saiba, só chegou a ser adotada na Lei Orgânica do Município de São Paulo.
[15] O termo diretamente se refere à Iniciativa Popular de Lei, novo instrumento criado nesta Constituição, ao lado do Referendo e do Plebiscito.
[16] Sua função de Chefia do Executivo o obriga a governar para todos, representados pelo Legislativo, e não somente para os que o elegeram.
[17] Como sabemos, o Executivo também pode propor leis e pode contestar uma lei aprovada pelo Legislativo, vetando-a por inteiro ou em trechos, como nos mostram frequentemente os noticiários políticos. Mas é o Legislativo que aceita ou não esses vetos, podendo até promulgar as leis vetadas. As instâncias superiores do Judiciário podem igualmente propor leis, e o Supremo Tribunal Federal, seu órgão máximo – a que a Constituição deu também a função de Tribunal Constitucional – pode invalidar uma Lei por inconstitucional. Mas cabe ao Legislativo votar outra lei, sobre o mesmo assunto, que respeite a Constituição. E o povo pode propor leis, por meio da Iniciativa Popular de Lei, mas ele só pode encaminhá-las ao Legislativo, para que ele as discuta e aprove ou não.
[18] Como noticiado, na mesma ocasião em que fez sua proposta de mudança para o presidencialismo, o atual Presidente da Câmara dos Deputados disse que, segundo ele, não teria havido tentativa de golpe no dia 8 de janeiro, numa posição oposta à do Procurador Geral da República e ao STF, conforme julgamento em processo.
[19] Esta norma mostra bem o entrelaçamento dos Poderes numa República.
[20] O poder enorme dado na Constituição ao Legislativo, como se indica neste texto, se deve ao fato dela ter sido elaborada pelo Congresso Nacional então eleito, e não por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para esse fim? Flavio Bierrenbach, relator da Emenda Constitucional instituindo a Constituinte, encaminhada por Sarney, Presidente da República, optou pela Assembleia exclusiva, considerando o grande número de apoios a essa opção que tinha recebido. Mas como na Comissão Especial que discutiu a Emenda essa opção era minoritária, este relator foi substituído e a Comissão adotou a opção da proposta encaminhada pelo Presidente da República, que levou o legislativo a legislar em causa própria.
[21] Há mais de 30 anos, quando o Presidente Sarney tentava obter uma decisão da Constituinte que esticasse seu mandato, um Deputado o lembrou de que, na vida política, é pela troca de favores que se conseguem votos. E com a sua lastimável apropriação de uma frase criada há mais de mil anos por um santo, referindo-se à reciprocidade do “é perdoando que se é perdoado”, nas relações humanas, mais gente ficou sabendo que o comércio de votos há muito tempo é banal nas relações entre o Executivo e o Legislativo.
[22] Uma estória contada em uma das Câmaras Municipais de São Paulo diz que um Prefeito, conhecido por uma atuação pouco respeitosa do caráter público dos recursos da Prefeitura, logo depois de empossado mandou um recado ao líder de uma bancada que lhe faria oposição: qual é o preço dessa bancada?
[23] Segundo um editorial do Jornal do Brasil durante a Constituinte (06/02/88), a frase “deixou claro que, para um gordo lote de parlamentares, a atividade política não comporta gestos de grandeza, não permite momentos generosos, não aceita a presença de estadistas. É um imenso varejão, governado pelos códigos do baixo comércio”.
[24] Consta que nosso campeão se arrependeu de ter se deixado usar, mas foi assim criada a “Lei de Gerson”, para sorte nossa fora do conjunto de leis do nosso Estado Democrático de Direito… E houve quem propusesse a ele que “revogasse sua lei”, num ato político nacional. Ele não se dispôs, dizendo que estava cansado e mesmo triste com tudo que tinham dito a respeito de suas frases. Mas certamente seu gesto teria tido um forte efeito na “desnaturalização”, no Brasil, da “esperteza” em proveito próprio.
[25] É por isso que recentemente foi noticiado que um vereador de uma das cidades do interior da Bahia, prestes a ter sua casa ou apartamento submetido a uma busca e apreensão da Polícia Federal, jogou pela janela uma sacola com mais de 200.000 reais. O dinheiro foi recuperado pela PF e ele foi preso, mas eleito e diplomado por procuração, e assumiu seu cargo…
[26] A candidatura em 1959 em São Paulo de “Cacareco”, famoso porque recém emprestado do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, teve, como protesto ou divertimento, 100 mil votos para vereador, votação superior à do mais votado… A marchinha “Cacareco é o maior” foi um dos maiores sucessos do carnaval de 1960. Em 1963 foi criado no Canadá um Partido de protesto chamado Rinoceronte, que existiu até 1993, sinal de que o problema não é só brasileiro. Em 1988 surgiu no Rio de Janeiro o candidato a prefeito Macaco Tião, animal do seu próprio Zoológico, que teve 400 mil votos, ficando em terceiro lugar.
[27] É para essa decisão de incluir ou não um projeto na pauta que surge a figura do Presidente da casa, cargo disputadíssimo pelos diferentes partidos representados no Parlamento, pelo óbvio poder de que está carregado, mesmo quando decide tomar essa decisão consultando os líderes dos partidos. E como é o próprio legislativo que define, pelo voto, quem dirige seus trabalhos, tudo pode acontecer se o eleito para essa função for menos cioso do respeito às regras civilizatórias adotadas no seu Regimento Interno, e faça manobras e manipulações mal-intencionadas.
[28] Assim, a bancada do agronegócio, por exemplo, conta hoje com mais de 300 parlamentares, ou seja, quase dois terços dos parlamentares, o que lhes permitiria conseguir passar até PECs que apresentem. Seria muito útil que alguma organização de pesquisa identificasse, além dos partidos de seus integrantes, de onde vem, qual o tipo de eleitor os elege, o que já fizeram no parlamento e antes dele, etc.
[29] Lula usou a palavra “picareta” ao que parece mais de uma vez, para designar aqueles que, no Congresso (“uns 300”…), defendem apenas interesses próprios e de grupos econômicos: em 1988, quando era Deputado Federal Constituinte, e também em 1993, quando era candidato à Presidência. Muitos deputados se sentiram ofendidos e houve até a possibilidade de processos contra Lula, que o afastariam dessa atividade. A banda Paralamas do Sucesso lançou em 1995 uma música a respeito.
[30] Os “puxadores de voto” são uma distorção que bem poderia ser considerada em uma Iniciativa popular de lei, que propusesse modificações a favor da democracia, que parecem difíceis de serem obtidas por iniciativa dos próprios parlamentares.
[31] Essa prática é usual também na maioria dos países do Terceiro Mundo com muita desigualdade social.
[32] Nesse sentido é pena que haja gente que luta por mudanças desconsidere a corrupção, reduzindo-a um comportamento pessoal e moral herdado de um “udenismo” ultrapassado, sem vê-la como uma real perversão da responsabilidade política, com graves efeitos nas condições de vida da população: ela desvia, para bolsos privados, recursos públicos em si insuficientes para as necessidades a serem atendidas. Até porque os filhotes da serpente que invadiu as eleições municipais, além de se aninharem tambem nos demais níveis do Poder Legislativo, em que o toma-lá-dá- cá de “trocas” é de maior valor, também invadem os outros Poderes. Por isso somos de repente surpreendidos com a presença de oportunistas em outros setores do governo, a menos que seja normal premiar com polpudas pensões as filhas de generais e marechais (desde que não se casem em cartório)
[33] Nosso primeiro Código Eleitoral foi criado por decreto de Getúlio Vargas.
[34] Na verdade, quem compra votos deveria ser punido por esse crime e mais outros quatro: por induzir eleitores a cometerem o crime de vender seu voto, por abuso de poder econômico na compra da grande quantidade de bens a distribuir para comprar votos, por propaganda enganosa por suas mentiras sobre o que poderá fazer se eleito.
[35] Na Câmara Municipal de São Paulo se dizia, jocosamente, sobre o que é preciso fazer para “aparecer”: se na entrada da Câmara um cachorro morder um vereador, nenhum jornal o noticiará. Mas, se um vereador morder um cachorro, a notícia irá com certeza para a manchete dos jornais.
[36] Expressão usada para designar a simples aparição do interessado na foto de evento público, com o qual ele não tem grande coisa a ver.
[37] Aqui aparece mais uma das vantagens que tem os parlamentares em relação aos seus competidores que iniciam sua carreira: eles contarão com os recursos do Parlamento para fazer essas publicações e as enviar pelo correio – quando o prefiram aos meios virtuais – em torno de assuntos que eles considerem de interesse geral, debatidos ou não no Parlamento.
[38] Entrevista de Domitila Barrios à jornalista brasileira Moema Viezzer, no livro “Se me deixam falar”, Editoras Dimensões e Global, 1990
[39] Na progressiva percepção da própria Justiça Eleitoral da importância dessa Lei, desempenhou um importante papel o então Presidente do TSE, Nelson Jobim.
[40] Note-se que, quando apresentadas, as iniciativas Contra a Compra de Votos e da Ficha Limpa foram ambas julgadas impossíveis de serem aprovadas. De fato, a primeira levou para isso 7 semanas e a segunda 7 meses. Mas foram aprovadas, incorporando contribuições discutidas pelos parlamentares em sua tramitação. Que isso sirva de estímulo para que utilizemos ao máximo esse instrumento de mudanças sociais que dependam de leis para se tornarem efetivas.
[41] Charles Péguy, em “O pórtico do mistério da segunda virtude”, terceira edição em 1912.