O Cinema e a reflexão sobre a Ditadura civil-militar no Brasil
Por Cláudia Mogadouro
O presente artigo traz algumas possibilidades de se refletir sobre o período de exceção vivido no Brasil durante a Ditadura civil-militar, que durou 21 anos, de 1964 a 1985. Assim como muitas expressões artísticas, o Cinema tem muito a dizer com obras realizadas neste período (muitas delas censuradas) e com documentários e filmes de ficção realizados posteriormente.
Por que estudar a ditadura nas escolas?
A História política recente do Brasil tem a marca dos 21 anos de ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985. Sob a perspectiva histórica, ainda é um tempo curto para o distanciamento do olhar, o que contribui para a dificuldade em se falar de tema tão doloroso para o Brasil. Uma prova da dificuldade desse distanciamento é que ainda sentimos claramente as consequências das ações do Estado nesse período, especialmente no que tange à desestruturação do sistema escolar. Fazia parte da estratégia dos ditadores censurar os meios de comunicação e retirar do currículo escolar qualquer matéria que fizesse refletir sobre o que se passava e formar um senso crítico. Nossos estudantes de agora já nasceram fora desse período e pouco se fala sobre o assunto nas escolas. Pior do que a omissão no currículo é o negacionismo que passou a ser disseminado, nos anos mais recentes, como se a ditadura fosse invencionice de meia dúzia de “terroristas”. É bom lembrar que houve negacionismo até do holocausto. Alemães marcados pela guerra tiveram que ouvir que o holocausto foi uma invenção. Difícil imaginar a dor das pessoas que passaram pela tortura dos porões da ditadura, ou dos filhos que viram seus pais e mães serem assassinados e ou torturados, ou de mães e pais que até hoje não puderam enterrar seus filhos. Sim, é uma História muito triste e difícil, mas, por respeito a essas pessoas, para que nossa História não seja esquecida, para que o arbítrio não volte, é fundamental que o tema seja tratado nas escolas, desde a educação infantil até o ensino de jovens e adultos. Parte da geração de brasileiros hoje com mais de 50 anos tem lembranças dessa fase, ainda que as memórias variem muito, por conta do contexto que viveram e da idade que tinham. Quem cursava a universidade na virada dos anos 1960 para os 1970, talvez se lembre da presença de “infiltrados” na sala de aula, policiais disfarçados de estudantes. Os que viviam fora dos grandes centros urbanos, o mesmo período pode significar uma infância singela, alheia aos principais fatos políticos, até porque a imprensa era censurada. A festa da copa do mundo de 1970, quando o Brasil foi tricampeão mundial, está na memória de muitos brasileiros, parte deles têm também na memória o uso político desta vitória pelo então presidente General Médici. O clima geral era de que ninguém sabia ao certo o que acontecia, mas havia estranhamentos: às vezes um jornal apresentava uma receita de bolo no lugar da manchete habitual (era uma resposta irônica dos editores, quando as notícias eram censuradas). Canções eram censuradas ou deixavam de ser tocadas repentinamente nas rádios. O samba “Apesar de Você”, de Chico Buarque, foi proibido depois que já era um grande sucesso. Nem todos compreendiam o que quis dizer a letra do samba “Vai Passar”, também de Chico, gravada em 1984: “dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações…”
Assim como o conhecimento e análise de músicas, o Cinema tem muito a dizer sobre esse
período. Durante os anos da ditadura, especialmente os cineastas do movimento Cinema Novo
realizaram filmes que traziam o questionamento sobre a ditadura nas “entrelinhas”, como O
Desafio, de Paulo César Saraceni (1965), com roteiro de Nelson Xavier. Glauber Rocha foi um
dos cineastas mais conhecidos e premiados no exterior, trazendo alegorias para a crítica ao
poderio militar no Brasil, como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe
(1967). Simplesmente falar das desigualdades sociais no Brasil era motivo para o filme ser
apreendido, como foi o caso de Maioria Absoluta, de Leon Hirszman (1964), documentário
que abordava o analfabetismo no Brasil. Outro recurso usado por muitos cineastas, até para
driblar a censura, era se basear em grandes obras da literatura, que mostravam a desigualdade
social no Brasil, como foi o caso das adaptações de Graciliano Ramos: Vidas Secas (1963) e
Memórias do Cárcere (1984), ambas dirigidas por Nelson Pereira dos Santos e São Bernardo
(1972), dirigido por Leon Hirszman. Estes são alguns dos muitos exemplos de filmes realizados
nesse período de exceção (ou um pouco antes) e que traduzem o debate tão necessário nas
escolas sobre os problemas sociais e políticos do Brasil. Vale visitar essas obras clássicas do
Cinema Brasileiro que estão disponíveis em várias plataformas digitais (como a do Itaú Cultural
Play), gratuitamente.
Documentários variados e preciosos
Assim que foi possível alguma brecha na censura (anos finais da ditadura), vários
documentários contundentes sobre esse período da História do Brasil foram lançados. É raro
que documentários sejam campeões de bilheteria, mas a fase da chamada abertura política
foi tão aguardada, que dois documentários brasileiros fizeram muito sucesso de público, em
1984. O primeiro deles é o clássico Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho (1984).
Um filme que conta a história de uma família camponesa que foi dilacerada pela perseguição
política. O formato inusitado do documentário além de chamar a atenção de enormes plateias
e ganhar muitos prêmios internacionais, marcou para sempre a história do documentário
brasileiro. O outro documentário que levou milhares ao cinema foi Jango, de Sílvio Tendler
(1984), um retrato do presidente que foi deposto em 1964. Completava-se à época os 20 anos
do golpe e a iminência da volta à democracia, um cenário político efervescente. Os dois filmes
são marcos na história do Cinema Brasileiro.
Sílvio Tendler já havia corajosamente realizado Os Anos JK, uma trajetória política, em 1980,
e seguiu sempre com documentários políticos muito bem roteirizados e montados. Mesmo
não abordando diretamente o período ditatorial, mas explicando a raiz das desigualdades no
Brasil, em 2006, nos brindou com dois documentários excelentes: Encontro com Milton
Santos ou O Mundo Global visto do lado de cá. A partir dos dois filmes (disponíveis no
youtube), podemos conhecer o pensamento do grande geógrafo Milton Santos, intelectual
exilado nos anos 1960 e falecido em 2001.
Outros ótimos documentários sobre o período da ditadura: Tempo de Resistência, de André
Ristum (2003), Vlado – 30 anos depois, de João Batista de Andrade (2005), Hércules 56, de
Sílvio Da-Rin (2006), Condor, de Roberto Mader (2007), Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski
(2009), Diário de uma Busca, de Flávia Castro (2010), Uma Longa Viagem, de Lúcia
Murat (2011), Repare Bem, de Maria de Medeiros (2012) e O Dia que Durou 21 anos, de
Camilo Tavares (2013).
A ficção diz muito sobre a História
Há vários filmes de ficção que buscam reconstituir fatos ou personagens ligados à resistência
política na época da ditadura. É o caso da cine-biografia Lamarca (1994, Sérgio Rezende), O
que é isso, companheiro? (1997, de Bruno Barreto), Cabra Cega (2005, Toni Venturi), Zuzu
Angel (2006, Sérgio Rezende), Batismo de Sangue (2006, de Helvécio Raton), entre outros.
Vários desses filmes receberam críticas negativas, porque a reconstituição não correspondia à
memória de alguns especialistas ou espectadores. É natural que isso aconteça, porque a
memória é muito subjetiva, é uma combinação de lembranças com reconstruções
particulares. Além disso, alguns desses filmes ratificam a idealização de alguns personagens,
como se eles não fossem de “carne e osso”. É frequente a noção de que filmes históricos
devem “mostrar fielmente” os fatos, como se isso fosse possível. Contar uma história no
cinema é sempre uma aventura ficcional, mesmo que seja um documentário. É inevitável que
o diretor, assim como toda a equipe de produção, dê a sua própria interpretação dos fatos. A
arte é sempre subjetiva! Mas isso não invalida que se promova a reflexão a partir do cinema
ou da literatura.
Um personagem histórico que ainda precisa ser mais conhecido dos estudantes é Carlos
Marighella, que foi otimamente representado no cinema em dois filmes. Um é o documentário
Marighella de Isa Grispum Ferraz (2012), que está acessível integralmente no youtube. Outro
é a cine-biografia Marighella, dirigida por Wagner Moura (2019), que deu muito o que falar,
pois foi exibida em festivais internacionais, mas aqui no Brasil colocaram muitos obstáculos
para sua exibição. Estávamos sob um governo de viés autoritário (embora dentro de uma
democracia). Os constantes adiamentos da estreia geraram grande expectativa. Quando
finalmente o filme entrou em cartaz, em 2021, o público lotou os cinemas e aplaudiu muito.
A ditadura civil-militar como pano de fundo
Há outros filmes de ficção que não se propõem a remontar um fato ou personagem. Nessas
histórias, a ditadura militar é pano de fundo ou coadjuvante da história central, dando mais
liberdade aos personagens e permitindo que a memória afetiva aflore. É o caso do excelente O
Ano que Meus Pais Saíram de Férias, dirigido por Cao Hamburger, em 2006. Interessante
lembrar que Cao Hamburger foi também diretor do Programa Castelo Rá-tim-bum (TV Cultura)
e de Castelo Rá-tim-bum, o Filme (1999). Trata-se de um diretor com muita capacidade para
se conectar com as crianças. O protagonista de O Ano que Meus Pais Saíram de Férias é um
garoto de 10 anos que vê seus pais sumirem, por perseguição política, bem no momento
ansiado da copa de 1970. A perspectiva da criança torna a trama mais divertida e mais leve,
amenizando um pouco a abordagem de um tema tão difícil.
Outro filme que trata com bom humor esse período é Cara ou Coroa, de Ugo Giorgetti (2012),
passado na São Paulo de 1971. O filme evita o maniqueísmo mostrando pessoas comuns que
de alguma forma se solidarizavam com a resistência política. E, mesmo reconhecendo que
eram tempos duros, as lembranças são boas porque “era a época da nossa juventude e é
sempre bom ser jovem”! Mais uma obra que traz a fase da ditadura civil-militar como pano
de fundo é Tatuagem, do pernambucano Hilton Lacerda (2013), com os atores Irandhir Santos
e Jesuíta Barbosa no elenco.
Muito sensível é o longa-metragem Deslembro, de Flávia Castro (2018). Trata-se de um filme
de ficção, levemente inspirado na vida da diretora. A história se passa em 1979, ano em que
os brasileiros conquistam a anistia para os presos políticos e muitas pessoas exiladas voltam
ao Brasil. A protagonista é Joana, uma adolescente que volta da França com sua família e viverá
um rito de passagem, descobrindo a história de seu pai e a sua própria identidade. Filme com
tema doloroso, abordado com muita suavidade. Trilha sonora impecável. A classificação
indicativa é de 14 anos (mas consideramos exagerada, poderia ser 10 ou 12 anos).
Uma opção muito criativa foi o longa de animação escrito e dirigido por Luiz Bolognesi Uma
História de amor e Fúria (2013). É uma animação que mostra a História do Brasil contada pelos
vencidos, com quatro episódios. Um deles (o terceiro) se passa no Rio de Janeiro, em 1968,
quando os protagonistas são militantes de uma organização armada, que assalta bancos para
financiar a resistência. Em alguns minutos a animação discute o idealismo dos jovens nesse
período, a tortura e a humilhação decorrente dela. A linguagem da animação se conecta muito
com os adolescentes. A animação está completa no youtube e a classificação indicativa é para
acima de 12 anos (adequada, no nosso ponto de vista). Por ser dividido em episódios que
podem ser vistos de forma independente, Uma História de Amor e Fúria tem muitas
qualidades para ser utilizado em sala de aula. O Janela Aberta elaborou um material de apoio
para inspirar professores na utilização deste filme, que pode ser localizado neste site.
Outra produção muito feliz é Hoje, de Tata Amaral (2013). Uma mulher (interpretada
brilhantemente por Denise Fraga) compra um apartamento com o dinheiro que recebe da
indenização do Estado pelo desaparecimento de seu marido, militante na época da ditadura.
Na mudança, o fantasma do marido aparece e ela revive muitos sentimentos confusos, de
amor e ódio daquela fase. O filme é fragmentado como é a nossa memória. Há uma mistura
do seu sentimento de culpa por ser uma sobrevivente com o desejo de virar a página.
Em 2016, a mesma cineasta Tata Amaral lança um longa-metragem (originado de uma série
televisiva), intitulado Trago Comigo. Nesta obra, o protagonista é Telmo, um diretor de teatro
que passou alguns anos no exílio e se vê desafiado a escrever e dirigir uma peça de teatro
sobre a resistência política nos anos de chumbo. O elenco é composto por jovens que não
conhecem bem a história da ditadura. O filme conta com depoimentos impactantes de ex-
presos políticos. O filme é uma mescla de ficção e documentário muito inspirado e didático. A
classificação indicativa, considerada adequada por nós, é para maiores de 12 anos. O filme
completo está acessível no site do SescTV:
https://www.youtube.com/watch?v=sJCmmOhwKdU
Além de conhecer a história recente do Brasil, é fundamental que as escolas promovam
reflexões sobre a importância de uma sociedade democrática, com ampla liberdade política,
de forma que não se permita que o autoritarismo de Estado volte a acontecer em nosso país.