Sobre a expressão “Sem-Poder”
A proposta de criação de “núcleos de reflexão e ação solidária”, apoiada na plataforma Candeeiro, apresenta esses núcleos como grupos de pessoas “sem poder”.
A palavra “sem” agregada à designação de algo a que temos direito mas de que não dispomos – por exemplo “terra” ou “teto” – quando usada referindo-se a “poder” pode dar a entender que também o “poder” é algo que não temos e queremos ter.
Mas não é nesse sentido que estamos usando a expressão “sem-poder”, uma vez que todos temos algum tipo de poder, como o de votar ou não votar, ou o de falar e mesmo gritar contra o que consideremos inaceitável, ou o de protestar pelo silêncio ou pela ausência; assim como o de se negar a obedecer, por vias diretas ou judiciais, a normas ou determinações de que discordemos.
Nós nos referimos ao poder político de mando ou direção. A expressão “sem-poder” designa então, em nossa proposta, a condição de todos aqueles que não fazem parte de nenhuma instituição do Estado nem pretendem assumir nenhum mandato auferido por eleições ou cargos preenchidos por nomeação dos que tem poder para isso. Ou seja os “sem poder” a que nos referimos são os cidadãos e cidadãs que desenvolvem suas atividades na planície da sociedade da gente comum.
Não inventamos no entanto essa expressão. Nós a encontramos, com o sentido com que adotamos, na obra “O poder dos sem-poder” do dramaturgo checoslovaco Vaclav Havel, que entrou na politica na chamada “Primavera de Praga” – um processo iniciado no seu país por dirigentes comunistas “reformistas” e militantes “dissidentes” ou “não conformistas” de seu partido. Eles visavam descentralizar a economia do país, assegurar mais direitos aos cidadãos e cidadãs assim como liberdade de imprensa, de expressão e de organização – para construir um “socialismo com rosto humano” como o que ainda hoje sonham muitos de nós. Mas essas reformas foram interrompidas com a invasão da Checoslováquia por tanques e soldados soviéticos.
Era o ano de 1968, marcado por protestos da juventude em todo o mundo contra regimes autoritários e contra diferentes tipos de opressão, com manifestações famosas como as de maio na França. Eles ocorreram também no Brasil, com manifestações estudantis contra a ditadura militar. Aqui, a resposta do poder instalado veio em dezembro, com o AI 5 de triste memoria, sem a ajuda de tanques norte-americanos.
A invasão soviética da Checoslováquia encerrou a “Primavera”, mas foi impedida de massacrar os “dissidentes” – como ocorrera na Hungria 12 anos antes – exatamente porque muitíssimos cidadãos e cidadãs “sem poder” resistiram de forma não violenta, desacorçoando os invasores. Entre suas ações auto-organizadas, houve desde as artesanais – mas de muita gente – como por exemplo as dos que, comunicando-se por radio amadores, invertiam as placas nas estradas para que os tanques fossem levados a errar o caminho para Praga e voltassem para Moscou. E entre as mais massivas, uma greve geral combinada com a divulgação de um decálogo da não cooperação com os invasores: não sei, não conheço, não direi, não tenho, não sei fazer, não darei, não posso, não irei, não ensinarei, não farei!
Infelizmente nada disso impediu que a ameaça da força bruta se impusesse, nem mesmo o suicídio do jovem Jan Palach, que se imolou com fogo numa praça para protestar contra o fim das liberdades que estavam sendo conquistadas. Mas Havel e os outros “dissidentes” continuaram lutando. Nove anos depois, em 1977, ele escreveu o Manifesto 77, com outros intelectuais com os quais amargou, por isso, cinco anos de prisão. Sua luta e de seus companheiros foi vitoriosa somente em 1989, no mesmo ano em que caia o Muro de Berlim. E eleições gerais levaram Dubcek – o Presidente “reformista” obrigado a renunciar em 1968 – a presidir o Parlamento e Havel a presidir o pais.
Em outubro de 78, logo depois do Manifesto, Havel escrevera o texto “O poder dos sem poder”, com o que aprendera nas lutas não violentas durante e depois da “Primavera”. Era um texto de esperança, que mobilizou os ativistas de seu país e de outros países, como os que criaram na Polônia em 1980 o Sindicato Solidariedade.
Poderemos nós também ser mobilizados, ao descobrirmos que é só aparente a impotência política dos “sem poder”? Seremos capazes de conseguir, por meios artesanais e outros, que milhões de brasileiros contribuam, com o poder que tem, para construir o outro mundo possível, depois que no Brasil consigamos afastar do Executivo os que assumiram esse poder político em 2018 – “despreparados, inconsequentes e boçais”, para usar os termos do General Santos Cruz a respeito daqueles a quem serviu como porta-voz no inicio deste des-governo tão trágico para o Brasil?