A volta da cultura cineclubista

A volta da cultura cineclubista

20.10.2015
Elaboração: Profª Drª Cláudia Mogadouro
Fonte: Grupo Cinema Paradiso

Os cineclubes nasceram na França (cinè club), em 1921, como expressão de um movimento cultural que desejava elevar o cinema ao status da arte. Após mais de 20 anos do surgimento do cinema, ainda se via muito preconceito por parte da intelectualidade francesa que o via apenas como entretenimento de massas. Riccioto Canudo, poeta que redigiu o manifesto da sétima arte, e Louis Delluc, um escritor e pesquisador da estética do cinema, organizaram uma sessão do filme O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene (o primeiro filme do movimento expressionista alemão), com um debate em seguida. O cineclube nasceu e se firmou como uma prática cultural que exibia filmes que representavam algo além da diversão e previa sempre um debate para aprofundamento das impressões do filme. Essa primeira fase do cineclube na França era voltada apenas para uma elite intelectual, mas foi importante para legitimar o cinema como instrumento de formação cultural.

No período da 2ª Guerra Mundial, tanto a produção de cinema foi interrompida como os cineclubes também. Ao final da guerra, após a desocupação alemã, a resistência francesa organizou um grande movimento de reerguimento cultural. O cinema foi escolhido como um dos eixos de uma política que devolveria aos franceses sua identidade cultural. Temos, portanto, nesse período uma reativação dos cineclubes, mas desta vez voltado para um público bem maior, por ser resultante de uma política pública. Estudantes e operários de várias cidades francesas se habituaram a ir ao cinema frequentemente e muitos debatiam o filme, após a sessão.

Duas figuras foram fundamentais para consolidar o culto ao cinema na França do pós-guerra. Henry Langlois, que criou a Cinemateca Francesa, foi responsável pela recuperação e preservação de muitos clássicos do cinema e oferecia, na Cinemateca, uma programação totalmente diversificada, tanto de filmes comerciais como de filmes que hoje chamaríamos de “cult”. Também investindo na educação pelo cinema, André Bazin foi um agitador cultural que criou inúmeros cineclubes e consolidou a crítica cinematográfica francesa, especialmente com a Revista Cahier du Cinéma. Ele é considerado o inspirador de quase todos os críticos e cineastas que formaram, no final dos anos 1950, o movimento conhecido como Nouvelle Vague – um marco do cinema moderno em todo o mundo, inclusive o Cinema Novo no Brasil.

O cineclubismo também floresceu no Brasil, nos anos 1950, influenciado por duas correntes muito fortes: o movimento estudantil, especialmente o Centro Popular de Cultura da UNE e a igreja progressista brasileira, ligada aos movimentos populares. Como na França, os cineclubes estavam sintonizados com uma rica atmosfera cultural e se constituíram numa importante formação cultural, que acontecia fora da escola.

O RENASCIMENTO DOS CINECLUBES

Com o advento do videocassete, nos anos 1980, prevaleceu a assistência doméstica de filmes e os cineclubes se enfraqueceram, como fenômeno mundial.

Mas o mesmo movimento, decorrente do desenvolvimento tecnológico, que fez decrescer os cineclubes no meio urbano, facilitou a entrada dos filmes na escola. Aos poucos, especialmente depois do surgimento dos DVDs, a prática de se ver filmes na escola foi se tornando cada vez mais intensa e habitual. Os filmes passaram a fazer parte de algumas aulas, mas, quase sempre interagindo com o conteúdo das disciplinas.

Atualmente, muitas escolas – públicas e particulares – possuem salas de projeção, projetores multimídia (data-shows) e um acervo considerável de DVDs. No entanto, muitas vezes essas salas estão ociosas, porque muitos gestores e professores ainda não se sentem preparados para organizar uma programação de cinema que vá além da ilustração de algumas disciplinas.

A criação de um cineclube potencializa o uso do cinema na escola, pois os filmes são naturalmente transdisciplinares, isto é, um bom filme normalmente atravessa os vários campos do saber. Em sala de aula, o professor que gosta de cinema normalmente tenta encaixar um filme no programa curricular, o que pode significar desperdício de outras abordagens possíveis da mesma obra.

Os cineclubes não devem concorrer com o horário das aulas. O ideal é que funcionem no contra turno das aulas, pois para que se cumpra a função de um cineclube, é importante que haja um debate em seguida. Pode-se pensar também em um convidado externo à escola, especialista, por exemplo, em um dos temas do filme, de forma a enriquecer a conversa. Para que essa programação se cumpra, o ideal é que a atividade tenha duração de, no mínimo, três horas ou mais. O tempo mais avantajado da atividade facilita que o filme seja exibido na íntegra, o que nem sempre é possível quando o professor usa o filme em sala de aula.

O cineclube não precisa ser organizado apenas pelos educadores. Ao contrário, é uma excelente oportunidade para um trabalho da escola com a participação dos estudantes como gestores. Os grêmios podem assumir esse papel ou uma comissão de alunos interessados, com a orientação de um ou dois professores. A integração de funcionários e familiares também é possível e saudável.

A frequência ao cineclube deve ser livre, sem obrigatoriedade de presença por parte dos alunos e nem de tarefa sobre o filme. Por isso, não se deve ter uma expectativa de grande público desde o início. O cineclube atua na formação do hábito de se ver e discutir filmes, portanto, os alunos mais interessados darão vigor à atividade e naturalmente atrairão outros alunos. É preciso paciência e sistematização.

A periodicidade das sessões de cineclube deve ser pensada de acordo com o fôlego da comissão de organização e da unidade escolar. É importante que a atividade seja regular, isto é, que os alunos esperem quinzenal, mensal ou bimensalmente que a atividade irá acontecer. Essa regularidade é fundamental para que o cineclube seja assimilado como parte da programação escolar. É preferível começar com uma programação mais espaçada e, se houver boa receptividade, diminuir o espaçamento entre as sessões.

A curadoria provavelmente será inicialmente realizada por algum professor que tenha um bom repertório cinematográfico, porém, ela pode ter a co-participação dos alunos mais interessados. É interessante a escolha de filmes com linguagem próxima ao repertório dos alunos. Muitas são as obras que emocionam os alunos, divertem, mas também tratam os temas com complexidade. Filmes clássicos de Charles Chaplin, Jacques Tatit ou François Truffaut podem estar na programação. Principalmente depois que o cineclube estiver consolidado como prática cultural na escola, um bom mediador (debatedor) pode facilitar o acesso a obras mais complexas, desenvolvendo ainda mais a leitura crítica e ampliando o repertório audiovisual dos alunos.

Uma das características do cineclube é uma programação diversificada, mas alternativa no sentido de não reforçar o que já é amplamente exibido nos cinemas comerciais e na televisão. É interessante que se encontrem eixos para os filmes serem escolhidos. Por exemplo, se o assunto da sustentabilidade estiver forte na escola, podem ser elencados alguns títulos de filmes com esse tema. Se a escola estiver vivendo situações de preconceito, não faltam títulos que abordem esse tema de forma complexa e intensa.

Outros podem ser os critérios para a programação: por exemplo, os gêneros ou movimentos cinematográficos. Filmes de suspense, ou de faroeste. Ou, pelo país: filmes italianos, norte-americanos, japoneses. Ou por diretor: filmes de Woody Allen, de Walter Salles, de Chaplin, de Hitchcock, de Tim Burton, e assim por diante. O importante é que os frequentadores percebam a articulação entre os vários filmes em sequência e os debates reiterem essa condição.

Nossos alunos, crianças e jovens, estão cada vez mais envoltos na linguagem audiovisual, mas raramente essas experiências são reflexivas e profundas. A escola é um espaço privilegiado para promover o encontro com obras do cinema, como uma experiência cultural significativa, muito além do entretenimento.

”Artigo escrito e publicado no Portal NET Educação:www.neteducacao.com.br