A volta da cultura cineclubista
06/03/2024
Elaboração: Profª Drª Cláudia Mogadouro
Fonte: Grupo Cinema Paradiso
A maioria das fontes diz que os cineclubes nasceram na França (cinè club), em 1921, como expressão de um movimento cultural que desejava elevar o cinema ao status da arte. Há pesquisas que mostram que a prática de debater os filmes após a exibição é bem anterior a 1921. Mas o que importa aqui é que havia, nos primeiros 20 anos de existência do cinema, forte preconceito por parte da intelectualidade que o enxergava apenas como entretenimento de massas. Riccioto Canudo, poeta que redigiu o manifesto da sétima arte, e Louis Delluc, um escritor e pesquisador da estética do cinema, organizaram, em 14 de novembro de 1921, uma sessão do filme O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene (o primeiro filme do movimento expressionista alemão), com um debate em seguida. Este evento foi considerado o início “oficial” dos cineclubes, embora saibamos que havia práticas de debates de filmes anteriormente, tomaremos o exemplo francês como referência, porque nem sempre à época essas outras iniciativas eram documentadas. O fato é que os cineclubes se firmaram como uma prática cultural que exibia filmes que representavam algo além da diversão e previa sempre um debate para aprofundamento das impressões do filme. Essa primeira fase do cineclube na França foi muito importante para legitimar o cinema como instrumento de formação cultural, ainda que estivesse voltada para uma elite intelectual.
No período da 2ª Guerra Mundial, a produção de cinema diminuiu significativamente ou, em alguns locais, foi interrompida, o que também aconteceu com os cineclubes.
O Pós-guerra e o Cinema
Na Itália, no imediato pós-guerra, teve início um movimento cinematográfico que pode ser considerado o divisor de águas do Cinema Moderno: o Neorrealismo Italiano. Este movimento tinha uma proposta anti-hollywood, na forma e no conteúdo, com temáticas sobre as pessoas exploradas, a miséria, as desigualdades sociais. Muitos filmes eram realizados com “não atores”, pessoas do povo para interpretar os personagens. A força do neorrealismo italiano influenciou o mundo todo, principalmente pelo contexto de destruição e pobreza em que tantos países se viram, naquela época. Surgiram movimentos cinematográficos que se chamaram “cinemas novos”, como no Brasil, no Japão, na Alemanha e assim por diante. Na França, chamou nouvelle vague (nova onda). Esses movimentos buscavam reproduzir a autenticidade do neorrealismo italiano, de acordo com as histórias e problemas sociais dos seus países, construindo novos cinemas e novos públicos. Para saber mais sobre o Neorrealismo Italiano, leia aqui: link para o artigo.
Os franceses também foram impactados pelo neorrealismo italiano. Com a desocupação alemã do território francês, a resistência francesa organizou um grande movimento de reerguimento cultural. O cinema e a literatura foram escolhidos como eixos de uma política que devolveria aos franceses um sentimento identitário. Por ser resultante de uma política pública, esse período uma reativação dos cineclubes foi voltada para um público bem maior. Estudantes e operários de várias cidades francesas, inclusive do interior, se habituaram a ir ao cinema frequentemente e muitos debatiam o filme, após a sessão.
Duas figuras foram fundamentais para consolidar o culto ao cinema na França do pós-guerra. Henry Langlois, que criou a Cinemateca Francesa, foi responsável pela recuperação e preservação de muitos clássicos do cinema e oferecia, na Cinemateca, uma programação totalmente diversificada, tanto de filmes comerciais como de filmes que hoje chamaríamos de “cult”. Também investindo na educação pelo cinema, André Bazin foi um agitador cultural que criou inúmeros cineclubes e consolidou a crítica cinematográfica francesa, especialmente com a Revista Cahier du Cinéma. Ele é considerado o inspirador de quase todos os críticos e cineastas que se formaram, no final dos anos 1950, constituindo a nouvelle vague.
No Brasil, a efervescência cultural do período pós-guerra trouxe novos ares para a Literatura, a Música, a Arquitetura, as Artes Plásticas e obviamente para o Cinema. Havia uma ânsia de muitos projetos para o Brasil em todas as áreas.
O cineclubismo floresceu no Brasil, nos anos 1950, influenciado por duas correntes muito fortes: o movimento estudantil, especialmente o Centro Popular de Cultura da UNE e a igreja progressista brasileira, ligada aos movimentos populares. Como na França, os cineclubes estavam sintonizados com a rica atmosfera cultural e se constituíram em uma importante formação cultural, que acontecia fora das escolas.
Bastante influenciado pelo neorrealismo italiano, Nelson Pereira dos Santos foi considerado o precursor do Cinema Novo no Brasil, por conta de dois filmes que realizou em meados dos anos 1950: Rio, 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957). Jovens cineclubistas se entusiasmam com essas obras e iniciam o movimento cinemanovista brasileiro, nos anos 1960. Não é simples separar a produção desses filmes do clima de debates dessa época. Pode-se dizer que esse período constituiu um “caldo cultural”, em que fazer e debater filmes se misturavam, inclusive com outras linguagens como a musical, poética e das artes visuais.
A prática cineclubista no Brasil nasceu em grandes e médias cidades nos anos 1950 e esteve forte até meados dos anos 1980.
Os Cineclubes nas Escolas
Com o advento do videocassete, nos anos 1980, prevaleceu a assistência doméstica de filmes e os cineclubes se enfraqueceram, como fenômeno mundial. Mas o mesmo movimento, decorrente do desenvolvimento tecnológico, que fez decrescer os cineclubes no meio urbano, facilitou a entrada dos filmes nas escolas. Aos poucos, especialmente depois do surgimento dos DVDs, a prática de se ver filmes no ambiente escolar foi se tornando cada vez mais intensa e habitual. Os filmes passaram a fazer parte de algumas aulas, mas, quase sempre interagindo com o conteúdo das disciplinas.
Atualmente, muitas escolas – públicas e particulares – possuem salas de projeção, com projetores multimídia. No entanto, muitas vezes essas salas estão ociosas, porque muitos gestores e professores ainda não se sentem preparados para organizar uma programação de cinema que vá além da ilustração de algumas disciplinas.
A criação de um cineclube potencializa o uso do cinema nas escolas, pois os filmes são naturalmente transdisciplinares, isto é, um bom filme normalmente atravessa os vários campos do saber. Não há nenhum problema em buscar o diálogo entre o filme e o currículo (como geralmente é feito quando se exibe um filme em sala de aula), mas é importante tomar cuidado para que não se desconsidere a linguagem artística e muitas outras abordagens possíveis que uma obra cinematográfica costuma trazer.
Os cineclubes não devem concorrer com o horário das aulas. O ideal é que funcionem no contraturno das aulas, pois, para que se cumpra sua função, é importante que haja um debate em seguida. Pode-se pensar também em um convidado externo à escola, especialista, por exemplo, em um dos temas do filme, de forma a enriquecer a conversa. Para que essa programação se cumpra, o ideal é que a atividade tenha duração de, no mínimo, três horas ou mais (uma vez considerado longa-metragem). O tempo mais avantajado da atividade facilita que o filme seja exibido na íntegra, o que nem sempre é possível quando o professor usa o filme em sala de aula.
O cineclube não precisa ser organizado apenas por educadores. Ao contrário, é uma excelente oportunidade para um trabalho da escola com a participação dos estudantes como gestores. Os grêmios podem assumir esse papel ou uma comissão de estudantes interessados, com a orientação de um ou dois professores. A integração de funcionários e familiares também é possível e saudável.
A frequência ao cineclube deve ser livre, sem obrigatoriedade de presença por parte dos frequentadores e nem de tarefa sobre o filme. Por isso, não se deve ter uma expectativa de grande público desde o início. O cineclube atua na formação do hábito de se ver e discutir filmes, portanto, as pessoas interessadas darão vigor à atividade e naturalmente atrairão outras. É preciso paciência e constância.
A periodicidade das sessões de cineclube deve ser pensada de acordo com o fôlego da comissão de organização e da unidade escolar. É importante que a atividade seja regular, isto é, que os alunos esperem quinzenal, mensal ou bimensalmente que a atividade irá acontecer. Essa regularidade é fundamental para que o cineclube seja assimilado como parte da programação escolar. É preferível começar com uma programação mais espaçada e, se houver boa receptividade, diminuir o espaçamento entre as sessões.
A curadoria pode ser iniciada por algum professor ou professora que tenha bom repertório cinematográfico, mas pode ter a coparticipação de estudantes. É interessante a escolha de filmes com linguagem próxima ao repertório das crianças e adolescentes. Muitas são as obras que emocionam as crianças e adolescentes, divertem, mas também tratam os temas com complexidade. Filmes clássicos do cinema mundial, como Charles Chaplin, Jacques Tatit ou François Truffaut podem estar na programação, mas os filmes brasileiros não podem ser esquecidos, tanto os antigos como os contemporâneos. Principalmente depois que o cineclube estiver consolidado como prática cultural na escola, uma boa mediação nos debates pode facilitar o acesso a obras mais complexas, desenvolvendo ainda mais a leitura crítica e ampliando o repertório audiovisual dos/as participantes.
Uma das características do cineclube é uma programação diversificada e alternativa no sentido de não reforçar o que já é amplamente exibido nos cinemas comerciais e na televisão, mas é saudável que se façam bons “acordos” com as pessoas que frequentam, que sejam ouvidas nas suas preferências. Um exemplo: adolescentes querem assistir a filmes de super-heróis, filmes bem comerciais, os chamados “blockbusters”. Sim, é possível. O que não pode ser flexibilizado é o debate. Assistir por assistir não vale. Neste caso, professores devem se apropriar da produção e promover um debate crítico e construtivo. E, em sessões seguintes, ofertarem outros tipos de filmes, menos comerciais. Essa alternância vai engajar muitas pessoas e contribuir para uma leitura crítica.
É interessante que se encontrem eixos para os filmes escolhidos, que podem ser temas de um semestre. Por exemplo, se o assunto da sustentabilidade estiver forte na escola, podem ser elencados alguns títulos de filmes com a temática socioambiental. No semestre seguinte, podem escolher filmes que abordem situações de preconceito. Não faltam títulos que tragam narrativas sobre bullying, racismo, machismo, etarismo de forma complexa e intensa. Esses fenômenos podem ser vistos em filmes realizados em muitos países diferentes. Muito importante que a equipe de curadoria contemple filmes de grande representatividade étnico-racial e de gênero.
Outros podem ser os critérios para a programação: por exemplo, uma seleção por movimentos cinematográficos ou gêneros – como suspense, faroeste, comédias ou romances – podem compor uma mostra. O importante é que os frequentadores percebam a relação entre as obras, porque aos poucos é que se constrói a cultura cinematográfica ou audiovisual.
Cineclubes Infantis
As crianças e jovens estão cada mais envoltos na linguagem audiovisual, mas raramente essas experiências são reflexivas e profundas. A escola é um espaço privilegiado para promover o encontro com obras do cinema, como uma experiência cultural significativa, muito além do entretenimento.
Atualmente, temos notícias de cineclubes infantis, em unidades de educação infantil (crianças de 4 a 6 anos) com muito sucesso e muito envolvimento das crianças. Para esta faixa etária em especial, é interessante que se usem curtas-metragens, para garantir a atenção das crianças. Importante também que o cineclube se diferencie pelo “ritual” do cinema (sala de projeção, regularidade, sala escura) e se garanta a “roda de conversa” ao final. Uma simples sessão de desenho na escola não é um cineclube. As crianças desde bem pequenas podem aprender que há filmes muito diferentes uns dos outros e que a sua experiência pode ser diferente da experiência do seu amigo. Trocar ideias e respeitar opiniões diferentes da sua é um aprendizado fundamental para a formação humanista das crianças.
É a infância o período mais fértil para se conhecer obras de arte de países diferentes, que apresentem culturas diferentes, tanto dos roteiros, como nos formatos e nas técnicas de representação.
Produção audiovisual na Escola
A expressão pelo audiovisual está muito presente também no cotidiano de crianças e adolescentes. É quase uma decorrência “natural” que um cineclube estimule a produção audiovisual feita por estudantes. Atualmente, os telefones celulares nos dão uma câmera de filmagem ao alcance das mãos. O acompanhamento de plataformas como youtube e tiktok inspiram crianças e jovens a produzirem seus próprios vídeos, os aplicativos trazem soluções de edição, trilhas sonoras, entre outras opções. Essas produções podem ser supérfluas ou não. O fato de se inspirarem nas mídias hegemônicas que são muitas vezes superficiais não implica necessariamente em produções tolas. Produzir a comunicação é uma forma de expressão, como escrever um texto ou gravar um podcast. É preciso que adultos olhem com muita seriedade para esse fenômeno.
Saber produzir audiovisual leva ao interesse pelo conhecimento da gramática audiovisual. Quem produz um pequeno curta metragem precisa aprender um pouco de roteiro, de enquadramentos, de edição, de direção de atores. No caso da produção de uma animação (a técnica do stop motion é apaixonante para as crianças), é preciso também pensar na linguagem, no conhecimento de que a imagem em movimento vem de uma ilusão de ótica.
O que a escola pode e deve fazer – e os cineclubes têm tudo a ver com isso – é estimular os estudantes a construírem seu repertório assistindo a obras bem produzidas, para tê-las como referência. É como na literatura: para se estimular que estudantes escrevam, é muito importante oportunizar a leitura de grandes obras da literatura e obras diferentes entre si. O mesmo vale para todas as linguagens artísticas. Cursos de produção audiovisual são muito bem-vindos e serão ainda melhor aproveitados se estudantes possuírem um repertório criativo e diversificado.
É bom lembrar que muitos (as) cineastas começaram a se interessar pela produção de filmes a partir de cineclubes. Os cineclubes permitem uma ampliação da leitura do mundo através de filmes e enriquecem notavelmente o repertório dos estudantes, quer seja para um futuro como cineastas e artistas de todas as linguagens, ou profissionais das exatas, dentistas, designers, representantes políticos. A Arte é necessária para a educação humanista como um todo.
Muitas escolas têm realizado festivais e mostras de curtas e longas-metragens, inclusive com professoras e professores também se aventurando na produção. Provavelmente, esses festivais permanecerão mais na memória afetiva dos estudantes, do que as aulas tradicionais.
Para terminar, registramos que professoras e professores têm se organizado para a construção de Cineclubes de Educadores. A ideia é que os debates de filmes auxiliem no aprimoramento profissional, principalmente no mergulho em temas densos que a contemporaneidade têm apresentado à sociedade e que, naturalmente, estão presentes nas escolas.