Rememorando a história da Lei 9849/99
Por Chico Whitaker
Este texto se destinou a subsidiar um eventual apoio da CNBB à Campanha pela Erradicação da Prática de Compra de Votos nas Eleições Brasileiras, que visa a retomada do respeito à Lei 9840/99. Ele foi escrito na perspectiva de que esse apoio é na verdade uma continuidade de apoio, porque essa Lei resultou da apresentação pela CNBB de um Projeto de iniciativa Popular. Quem o escreve é o então Secretário Executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz, em que nasceu e foi elaborado esse Projeto. Ele pode interessar os membros da Igreja Católica que estão se engajando na Campanha.
A compra de votos foi “naturalizada” na cultura político-eleitoral brasileira por ter sido raríssimamente punida durante quase duzentos anos. Tipificada pela primeira vez como crime no início do Império, em 1830, o foi de novo na República, em 1890, e no primeiro Código Eleitoral Brasileiro, de 1932. Este Código também criou a Justiça Eleitoral. Mas nenhuma dessas normas legais criou uma forma da Justiça Eleitoral agir eficazmente para punir esse crime. Deixado por conta do Código Penal, os infratores eram reeleitos várias vezes, graças à possibilidade de apresentar recursos que postergavam, indefinidamente no tempo, as condenações.
Só em 1999, um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, proposto ao Congresso Nacional pela CNBB, juntamente com a Comissão Brasileira Justiça e Paz, que o elaborou, deu à Justiça Eleitoral a eficácia necessária. Esse tipo de Projeto de Lei era um novo instrumento de participação popular no processo legislativo, criado 10 anos antes pela Constituinte. A capilaridade da CNBB em todo o Brasil permitiu então que um milhão e meio de eleitoras e eleitores assinassem o Projeto. E levado ao Congresso Nacional, tornou-se a Lei 9840/99, como primeiro Projeto de Lei desse tipo por ele aprovado.
Mas a necessidade de combater o crime da compra de votos tinha surgido antes, também dentro da CNBB, na Campanha da Fraternidade de 1996, cujo tema foi Fraternidade e Política. A reflexão das comunidades de Igreja, nesta Campanha, deixou claro que a compra de votos desrespeita um direito fundamental dos cidadãos e cidadãs, na própria base da democracia: escolher livremente, pelo voto, aqueles que devem governar o país. Ao mesmo tempo, ela distorce a representatividade dos eleitos, tornando membros do Congresso quem tem dinheiro para comprar os votos dos mais carentes, ou para pagar cabos eleitorais de diversos tipos, que sequestrem os votos dos mais desavisados.
É importante lembrar que a aprovação desses dois Projetos, pelo Congresso, foi possível também graças ao contato direto e pessoal com os parlamentares, em momentos decisivos da sua tramitação, de vários Bispos, como Secretários Gerais e mesmo como Presidentes da CNBB. Além da ação de sacerdotes e leigos assessores, que fizeram várias comunicações, expressando a importância que a instituição dava aos Projetos. Por isso a Lei da Ficha Limpa era chamada, pelos parlamentares, de Lei dos Bispos.
Não podemos também esquecer que a decisão da CNBB, de apoiar o Projeto de Lei no Congresso, foi tomada em Assembleia Geral, e que o slogan usado na coleta de assinaturas – “Voto não tem preço, tem consequências” – foi cunhado por uma comunidade de igreja de Ponta Grossa, no Paraná.
Nas eleições realizadas em seguida, os grupos que colheram assinaturas – em grande parte estimulados pela Igreja Católica, com o apoio ecumênico do CONIC – passaram a fiscalizá-las quanto à compra de votos, e dezenas de candidatos tiveram seus registros de candidatura cassados pela Justiça Eleitoral, como determinava a nova Lei.
Nisto foi decisivo o apoio dado pelo Ministro Nelson Jobim, então Presidente do TSE, que captou rapidamente a importância da Lei 9840/99 e imediatamente visitou todos os TREs, para dirimir dúvidas sobre seus efeitos positivos para a Justiça Eleitoral e para o país.
A combinação desta Lei com a Lei da Ficha Limpa, proposta dez anos depois, também pela CNBB e pela CBJP, que a elaborou, e aprovada em 2010, levou a que fossem cassados os registros de centenas de candidatos.
Mas pouco a pouco a prática da compra de votos recrudesceu, mais ainda nos dias de hoje.
Em 2015 ela começou a ganhar um novo impulso com a conquista, pelo Legislativo – em contradição com os preceitos constitucionais sobre as funções e a independência dos Poderes – do poder de apresentar o que se chamou de “emenda impositiva”: os recursos nelas previstos seriam liberados após a aprovação da emenda, mesmo não tendo sido indicado de onde viriam. Era o que sempre deveria ocorrer, até então, com as emendas parlamentares ao projeto de Lei do Orçamento, apresentado pelo Executivo.
Esses recursos públicos passaram então a serem usados para comprar votos. E ainda mais intensamente quando puderam ser transferidos sem transparência por PIX, as chamadas emendas PIX.
E nestas próximas eleições se agrega o risco, para o qual a sociedade já foi alertada por um Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, em cerimônia na OAB de São Paulo, do crime organizado se infiltrar no Legislativo (se é que isso ainda não acontece) comprando ou sequestrando votos para seus candidatos.
Mas os responsáveis pelo lançamento da atual campanha identificaram mais uma razão para retomar o esforço feito de 1996 a 1999 pela CNBB.
É muito mais fácil ser eleito comprando votos do que fazendo campanhas eleitorais com conteúdos bem claros quanto às suas promessas como candidatos. Basta para isso que se tenha dinheiro. O que explica a baixa qualidade ética e política de boa parte dos atuais membros de nossos Legislativos, nos seus três níveis. Essa prática foi então se tornando cada vez mais convidativa para oportunistas e aproveitadores. E é o que ocasiona as dificuldades nas atuais relações do Executivo com o Legislativo, de que temos conhecimento pelos noticiários, assim como a cada vez mais baixa representatividade desse Poder.
Mas quem organizou e como é orientada a atual Campanha, que dá continuidade aos esforços iniciados há 30 anos?
O grupo que a propôs nasceu numa Roda de Troca de Saberes sobre o poder do Legislativo, na Universidade Mútua. Essa organização da sociedade civil funciona basicamente por meios virtuais, e foi criada para estimular tais Rodas sobre diferentes temas, na perspectiva pedagógica de Paulo Freire, segundo a qual todos têm alguma coisa a ensinar e a aprender.
Ao se iniciar o ano de 2025, esse grupo decidiu redigir um Manifesto pela erradicação da prática da compra de votos, apresentado em anexo (para imprimir as duas páginas do Manifesto, favor usar o link apresentado ao final).
Quatro membros das entidades que participaram de sua elaboração assumiram a responsabilidade de assinar o Manifesto, como seus autores: Antonio Funari, Presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo; Luciano Santos, Diretor-Presidente do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. criado após a aprovação. pelo Congresso, da Lei 9840/99; Fred Ghedini, do Movimento Geração 68 e Cofundador da Rede D (Direitos Humanos) e eu mesmo, Chico Whitaker, da Universidade Mútua e ex-secretário Executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz.
Antes de ser lançado publicamente, em praça no centro de São Paulo, o Manifesto foi assinado por mais 68 pessoas, e os primeiros três foram proclamados patronos da campanha, em homenagem a suas longas e admiráveis trajetórias na defesa dos Direitos Humanos: Margarida Genevois, Fabio Konder Comparato e Luiza Erundina.
Após seu lançamento, outras 627 pessoas (até este momento) assinaram o Manifesto, distribuídas por todo o Brasil, conforme indica o Mapa anexo (ver link no final deste texto), assim como 51 organizações. Todos esses nomes podem ser encontrados no site ocandeeiro.org (https://ocandeeiro.org/manifesto-contra-venda-votos/)
As orientações e iniciativas da Campanha são decididas pelos quatro responsáveis pelo Manifesto, juntamente com um grupo crescente de 20 a 30 pessoas, que para isso se reúne semanalmente.
A Campanha começou com a divulgação do Manifesto e sua discussão em reuniões diversas. Agora iniciou o processo de criação, no máximo possível de municípios brasileiros, de Comitês Populares de Fiscalização Eleitoral. Caberá a esses Comitês, nos moldes dos grupos formados quando da aprovação da Lei 9840/99, identificar casos de compra de votos, coletar provas e os denunciar ao Ministério Público, que tem a prerrogativa de levá-los ao Juiz Eleitoral ou ao Tribunal Regional Eleitoral. Nestas ações os Comitês contarão com o apoio do MCCE, para o bom direcionamento das denúncias.
Para estimular a criação e apoiar esses Comitês, está sendo formado um Coletivo Nacional de Facilitadores, que cubra todo o território nacional e organize “mutirões contra a compra de votos” em todos os Estados, nas eleições de 2026, 2028 e 2030.
Pensamos que isso será possível com a participação, como Facilitadores, de grande parte dos signatários do Manifesto, cuja distribuição, no país, é indicada no mapa anexo de suas cidades de residência, continuamente atualizado ( http://u.osmfr.org/m/1298771/).
A realização da Campanha em três eleições seguidas foi considerada necessária porque a compra de votos foi naturalizada durante quase duzentos anos, e não é por um esforço limitado no tempo que poderemos erradicá-la. Assim, não é impossível que a tenhamos que continuar depois de 2030.
Ainda mais porque a compra de votos é uma tendência criada e crescentemente reforçada pela lógica do sistema capitalista, com a dimensão competitiva que a move, no qual estamos imersos há ainda mais centenas de anos. Segundo essa lógica, o importante na vida é enriquecer. E para isso uma das melhores profissões é a de político: ela assegura bons vencimentos e, quando princípios éticos se tornam secundários, o acesso a “comissões” nos negócios do governo e das empresas favorecidas por suas decisões. E como já foi dito, a compra de votos é o caminho mais fácil para entrar na chamada “classe política”.
Por isso mesmo a Campanha está se combinando com um trabalho educativo, especialmente sobre o Legislativo, cuja eleição é quase menosprezada, pelo fato de coincidir com a do Executivo e esta atrair praticamente todo o noticiário e os próprios eleitores e eleitoras.
Essa desvalorização do voto no Legislativo é aprofundada pelo desconhecimento, de grande parte dos eleitores e eleitoras, do fato que, num Estado Democrático de Direito, o Executivo só pode fazer o que for autorizado por Lei, e quem faz a Lei é o Legislativo.
Nessa dimensão de formação política, estamos dotando a campanha de instrumentos que apoiem essa formação, com uma página no site do ocandeeiro.org – https://ocandeeiro.org/semcompradevotos-apoio/ – que contém artigos, vídeos e outros links uteis, e o mapa das cidades de moradia dos signatários do Manifesto (a ser continuamente atualizado): http://u.osmfr.org/m/1298771/
16 de novembro de 2025
